A presidente Dilma Rousseff quer modificar o sistema brasileiro de governo.
Desistiu da Assembleia Constituinte para a reforma política - ideia nascida de
supetão ante as manifestações de junho passado e que felizmente nem chegou a
sair do casulo - e agora tenta por decreto mudar a ordem constitucional.
O
Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de
Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), é
um conjunto de barbaridades jurídicas, ainda que possa soar, numa leitura
desatenta, como uma resposta aos difusos anseios das ruas. Na realidade é o mais
puro oportunismo, aproveitando os ventos do momento para impor velhas pretensões
do PT, sempre rejeitadas pela Nação, a respeito do que membros desse partido
entendem que deva ser uma democracia.
A fórmula não é muito original. O decreto cria um sistema para que a
"sociedade civil" participe diretamente em "todos os órgãos e entidades da
administração pública federal direta e indireta", e também nas agências
reguladoras, através de conselhos, comissões, conferências, ouvidorias, mesas de
diálogo, etc. Tudo isso tem, segundo o decreto, o objetivo de "consolidar a
participação social como método de governo".
Ora, a participação social numa
democracia representativa se dá através dos seus representantes no Congresso,
legitimamente eleitos. O que se vê é que a companheira Dilma não concorda com o
sistema representativo brasileiro, definido pela Assembleia Constituinte de
1988, e quer, por decreto, instituir outra fonte de poder: a "participação
direta".
Não se trata de um ato ingênuo, como se a Presidência da República tivesse
descoberto uma nova forma de fazer democracia, mais aberta e menos
"burocrática". O Decreto 8.243, apesar das suas palavras de efeito, tem - isso
sim - um efeito profundamente antidemocrático. Ele fere o princípio básico da
igualdade democrática ("uma pessoa, um voto") ao propiciar que alguns
determinados cidadãos, aqueles que são politicamente alinhados a uma ideia,
sejam mais ouvidos.
A participação em movimentos sociais, em si legítima, não pode significar um
aumento do poder político institucional, que é o que em outras palavras
estabelece o tal decreto. Institucionaliza-se assim a desigualdade,
especialmente quando o Partido (leia-se, o Governo) subvenciona e controla esses
"movimentos sociais".
O grande desafio da democracia - e, ao mesmo tempo, o grande mérito da
democracia representativa - é dar voz a todos os cidadãos, com independência da
sua atuação e do seu grau de conscientização. Não há cidadãos de primeira e de
segunda categoria, discriminação que por decreto a presidente Dilma Rousseff
pretende instituir, ao criar canais específicos para que uns sejam mais ouvidos
do que outros. Ou ela acha que a maioria dos brasileiros, que trabalha a semana
inteira, terá tempo para participar de todas essas audiências, comissões,
conselhos e mesas de diálogo?
Ao longo do decreto fica explícito o sofisma que o sustenta: a ideia de que
os "movimentos sociais" são a mais pura manifestação da democracia. A História
mostra o contrário. Onde não há a institucionalização do poder, há a
institucionalização da lei do mais forte. Por isso, o Estado Democrático de
Direito significou um enorme passo civilizatório, ao institucionalizar no voto
individual e secreto a origem do poder estatal.
Quando se criam canais paralelos
de poder, não legitimados pelas urnas, inverte-se a lógica do sistema. No
mínimo, a companheira Dilma e os seus amigos precisariam para esse novo arranjo
de uma nova Constituição, que já não seria democrática. No entanto, tiveram o
descaramento de fazê-lo por decreto.
Querem reprisar o engodo totalitário, vendendo um mundo romântico, mas
entregando o mais frio e cinzento dos mundos, onde uns poucos pretendem dominar
muitos. Em resumo: é mais um ato inconstitucional da presidente Dilma. Que o
Congresso esteja atento - não apenas o STF, para declarar a
inconstitucionalidade do decreto -, já que a mensagem subliminar em toda essa
história é a de que o Poder Legislativo é dispensável.