sexta-feira, 2 de junho de 2017

"Que diria o mundo se houvesse um festival só reservado a brancos?", por João Pereira Coutinho

Christophe Ena/Associated Press
A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, crítica ferrenha do festival que bane pessoas não negras
A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, crítica ferrenha do festival que bane pessoas não negras


Folha de São Paulo

A Prefeitura de Paris proibiu um festival feminista em julho. Erro meu. O festival não é apenas feminista. É negro e feminista. Motivo?

Discriminação. No referido festival existem espaços não autorizados a brancos. Para Anne Hidalgo, a prefeita, o caso é intolerável. E várias organizações que lutam pelos direitos dos negros condenaram o racismo óbvio dos organizadores. O que diria o mundo, a começar pelo mundo negro, se houvesse um festival só reservado a brancos?

A resposta foi dada pela jornalista Charlie Brinkhurst-Cuff no "The Guardian": a comparação não faz sentido, diz ela. Quando os brancos se reúnem em espaços exclusivos, isso representa "preconceito" e "superioridade étnica". Quando o mesmo é praticado por negros, isso é partilha de um sofrimento comum. No caso, o sofrimento dos negros às mãos dos brancos.

Haveria mil maneiras de mostrar os problemas de "raciocínio" da sra. Brinkhurst-Cuff.

O primeiro, por absurdo que pareça, é que ele oferece munições para grupos neonazistas que não aceitam a presença de negros nas suas reuniões.

Se a "irmandade do sofrimento" é desculpa para excluir o outro, então um neonazista poderá argumentar, com toda a seriedade, que os neonazistas precisam de manter a "pureza" dos seus encontros para poderem partilhar o sofrimento da "raça branca". O sofrimento com o multiculturalismo, para começar. Mas também o sofrimento com a própria maioria branca, que felizmente olha para os neonazistas como o lixo moral que eles deveras são.

Existe um segundo problema: desde quando a luta pelos direitos dos negros é exclusiva dos negros?

Para ficarmos na história, será preciso lembrar a pigmentação da pele dos grandes abolicionistas? William Wilberforce não era negro. Joaquim Nabuco também não.

Mais tarde, nos Estados Unidos, não foi apenas Martin Luther King a marchar contra a segregação. Nomes como James Reeb ou Juliette Hampton Morgan eram branquíssimos e empenhadíssimos. E por causa disso perderam a vida.

O mesmo vale para hoje: a luta pela igualdade racial é uma causa que transcende "raças". Fechar a porta aos brancos, a todos os brancos, é repetir a falácia cognitiva dos supremacistas "arianos". Aqueles que olhavam para os negros, todos os negros, como igualmente condenáveis.

Isso significa que eu apoio a intervenção da Prefeitura de Paris no festival?
Antes de responder à pergunta, existe outra: mas quem é o indivíduo branco que, em juízo perfeito, pretende frequentar um espaço onde não é bem-vindo? Seremos capazes de imaginar um indivíduo negro a chorar copiosamente porque não pode ir a uma reunião de neonazistas?

A Prefeitura de Paris deve fazer alguma coisa, sim: internar qualquer pessoa –branca, negra, amarela, azul– que tenha o desejo bizarro de perder o seu tempo em espaços de ódio e ressentimento.