quarta-feira, 14 de junho de 2017

"Diálogo noturno com um homem vil", por Paulo Delgado

O Estado de São Paulo


No Palácio Alto, olhos abertos refletiam nos espelhos. No Palácio Baixo, melhorar a economia arrefecia a crise da democracia.
O país poderia voltar a lutar pela normalidade, se pedantes da ordem não preparassem uma desordem. O partidarismo tudo domina, as instituições sumiram atrás das pessoas, na metafísica política um Poder ataca o outro sem partilhar o segredo que o motiva.
Foi assim, como num paraíso perdido, que poderosos se uniram aos que os odeiam para envenenar o governante.
– Como pode, você na minha presença?
– Ora, autoridade. Use com outro sua astúcia. Quem se sente só em Palácio de Espelho? O poder reflete também o objeto caído. Somos eco um do outro.
– Por que a audácia de argumento tão vertiginoso?
– A profundeza sem fundo das altas autoridades do período. Somos o arquétipo do bem-sucedido pelas facilidades do poder. Preciso agregar meu interesse particular a seu juízo individual. Sabe você que a exploração pessoal das ligações funcionais é toda nossa cultura. Você é um axioma. Eu tenho dono. Meu cifrão é mar sombrio, usufruto vulgar dessa sina que preciso proteger.
– Sou da Justiça, por que me impõe a tirania da tal conversação?
– Afeição pela dissidência. Jogamos com ambiguidade, sentimento de aversão, o esporte preferido da política, a mesma índole do acusador. Hospitaleiramente, entrei pela garagem. Assim o farei mais tarde para aplicar nele o veneno. Mas como minha liberdade está nas mãos dos que acuso, entregarei, com indecente pressa, a prova que combinamos construir.
– Tonto, cala a boca. São desvios humanos o que parece índole. Aparência não é similitude. Fizeram-me duro, mas sem a companhia do poder sou descosido. Quanto a você, sua força é essa moral molenga do interesseiro. Falas como se estivesses ciente da sentença...
– Estão dessacralizados todos os Poderes. A sordidez nos une. O processo mental de vocês mira o talento dos desregrados. Acaba fazendo bem e mal cúmplices na intenção de julgar. Mas se tal virtude visa a infelicidade da política, faça a conta de quem somos e fique tranquilo de tomar nosso partido.
– Compreendo. Precisamos do Palácio dos Olhos Vendados para definir a exceção. Eles gostam de ser vistos separados para impor sua própria versão das coisas. Vou lisonjear esse egoísmo. Quando ficar claro que “não é na prisão que se deplora a perfídia dos homens: é na roda dos príncipes”, sentirão vergonha do jogo de dados que praticam com a nação.
Apesar da luva de pelica foi possível ouvir o argumento.
– Somos os autos. Individuais somos rápidos. Não nos devemos amoldar às mistificações. Mas entendi que era praxe condenar o criminoso, não o recalcar em nosso meio. Sinto um certo fascínio na ideia de colocar o mais alto cargo no solo do delito. E a moral, em tudo isso? Será que estamos na idade de aplicar um golpe tão baixo no país?
– Não seja anjo, é uma conjuração para apagar a esquisita benevolência de financiar desonestos. Não há risco, vamos atacar políticos, a parte maldita desse tempo. Basta os acusar, nasce o transgressor. Vamos fazer o crime travar o combate para a Justiça. Vigiamos a fronteira do futuro, desmoralizamos o boçal que crê na lei. Somos o privilégio, o passado que não passa. A confusão também ajuda a deter o rigor do jovem juiz e sua alcateia moralista que ameaça bisbilhotar o grande banco.
– Oh, Deus, topo, farei da erosão de regras a sentença. Do susto sumário, um rito, grau zero do discernimento.
– Obrigado. Me dê carga de cavalaria que te dou a cabeça que me pede. Troco o expurgo pela minha alma.
– Verás a feiura da desordem de que a cobiça é capaz. Vamos empanturrar a plebe com flagrantes. Comer o crime de forma ostentatória, perpetuar o círculo intimidatório. E levaremos ao exílio seu iate. (Risos.)
– Show. Sou de vocês a última hora. Como a maldade do poder exala bem suas exigências emocionais. Tudo aceito, até subornei seus auxiliares. Mas por que tenho de assumir tal empreitada de envenenar quem nós três queremos morto?
– Não subestime o que é estarmos tão perto do fedor do vil encargo. Entenda, seu celerado, renunciamos ao privilégio de fazer sozinhos. Há maior glória do que o crime compartir com a Justiça a injustiça?
– Necessito outro desatino. Protejam quem me fez bilionário e tornem secundários os problemas do charlatão que ao povo agrada...
– Construiremos um Gulag para ele! O chefe da Fazenda guardará moeda suja. Mas como confiar no seu silêncio?
– Ora, ele nos fez escandalosamente ganhadores. Aproveite, que a honra está em grande dispersão.
– Como é estranha a coincidência de propósitos. Foi ele que me deu a cortiça, eu fiz a rolha. Recebi numa moeda, converti na outra. Tirou do banco do povo, depositei no banco de outro povo. É mais do que na Paz Romana. Juízo, todos sabem que ele não lê currículos, escolhe por temperamento, espera ser bem tratado...
– Como assim, seu tenebroso...?
– Mantenha a forma escorregadia como o tratam, aceitando que escarneça da Justiça. Há gente demais para devolver o excesso que o fez cativante. Ofereça logo a taça enfeitiçada, o fluxo desejante da cadeira que cobiçam.
– Saia daqui, faça sua parte.
Pouco tempo depois ele chegou excitado com a fruta mordida.
– Está feito! Eis o gravador, nossa maçã, igual fortuna nos une, não há grau onde o destino nos desuna.
Quando vozes de um jogral ensaiado vieram à tona, os elos da dissimulação formaram a corrente que insultou a razão. Os opostos se uniram e um só comentário aprisionou a pátria na versão.
Sem o menor embate, e são, ele deu adeus à autoridade. E os tranquilizou:
– O mundo da explicação não é o mundo da verdade. Realizamos grande missão, para homens pequenos que somos.
E o que parecia ser um fato jurídico era um fato da má civilização que nos domina.