segunda-feira, 5 de junho de 2017

"Cracolândia", por Carlos Alberto di Franco

O Estado de São Paulo


O narcotráfico está ceifando vidas. São Paulo

 e o Brasil têm de encarar a realidade



Domingo, 21 de maio. Começa uma megaoperação da polícia na cracolândia. Gritaria, corre-corre, bombas de gás lacrimogêneo. Centenas de policiais fazem uma varredura na região e, ao lado de funcionários da Prefeitura e de máquinas retroescavadeiras, desmantelam o cenário de morte e autodestruição humana que, vergonhosamente, convive com a cidade mais rica do País.
O prefeito João Doria gravou um vídeo para as redes sociais. Foi enfático: “A cracolândia aqui acabou, não vai voltar mais. Nem a Prefeitura permitirá nem o governo do Estado. A partir de hoje, isso é passado”. Foi precipitado. Não acabou. Com a dispersão dos usuários, uma nova cracolândia surgiu a menos de 400 metros da antiga, na Praça Princesa Isabel. O tráfico e o uso de crack continuaram. Outras cracolândias brotaram, do Minhocão à Avenida Paulista. A coisa não é tão simples. Não se resolve no grito e no marketing. É preciso um projeto sério, articulado, sem improvisações. 
Acredito na determinação do prefeito e do governador de São Paulo. Mas espero que façam uma autocrítica sobre a recente operação. Reforcem os pontos positivos e retifiquem os erros cometidos. Não é possível conviver com uma cidade assustadora: edifícios pichados, prédios invadidos, gente sofrida e abandonada, prostituição a céu aberto, zumbis afundados no crack, uma cidade sem alma e desfigurada pelas cicatrizes da ausência criminosa do poder público. Mas uma só andorinha não faz verão. É preciso uma ação articulada com todos os atores: governo, Judiciário, sociedade.
A cidade de São Paulo foi demitida por seus governantes. São Paulo, a cidade mais rica do País e um dos maiores orçamentos públicos, tem sido um retrato de corpo inteiro da ineficiência do Estado. E nós, jornalistas, precisamos mostrar a realidade. Administrações anteriores falavam de uma revitalização que só existia no papel. O novo governo merece um crédito de confiança, mas esperemos que não sucumba ao ilusionismo do marketing.
Voltemos ao tema das drogas. A dependência química tem muitas frentes: questões sociais, humanitárias, de saúde, combate ao crime, fortalecimento das entidades de recuperação de adictos, batalhas jurídicas e enfrentamento dos dogmas ideológicos. Basta pensar, amigo leitor, na gritaria contra as internações compulsórias. Sem decisão livre, por óbvio, não há recuperação consistente. O dependente precisa querer. Mas para exercer a liberdade é preciso ter um mínimo de capacidade de discernimento. A internação compulsória, não indiscriminada e feita com aval psiquiátrico, pode representar a ruptura das algemas que aprisionam o dependente num círculo infernal. 
A política transformou-se num espetáculo. A discussão das ideias e dos planos de governo sucumbiu às interdições da ditadura politicamente correta e às regras ditadas pela produção de um show. Temas relevantes para o futuro da sociedade primam pela ausência. Não se discute um projeto sério para a segurança pública, não obstante a surpreendente desenvoltura das facções criminosas. Enquanto isso, caro leitor, a violência avança impune e seu principal estopim, o mercado das drogas, continua fora da agenda pública. 
Multiplicam-se, paradoxalmente, declarações otimistas a respeito das estratégias de redução de danos. O essencial, imaginam os defensores da nova política, não é a interrupção imediata do uso de drogas pelo dependente, mas que ele tenha uma melhora em suas condições gerais. A opção pela redução de danos pode ser justificada em determinadas situações, mas não deve ser guindada à condição de política pública. Afinal, todos sabem que, assim como não existe meia gravidez, também não há meia dependência.
mbora alguns usuários possam imaginar ser capazes de controlar o consumo, cedo ou tarde descobrem que já não são senhores de si próprios. Não existe consumidor ocasional. Existe, sim, usuário iniciante que, frequentemente, engrossa as fileiras dos dependentes crônicos. Afinal, a compulsão é a marca do usuário de drogas. 
Mas os “vanguardistas” não desistem. Defendem, irresponsavelmente, a criação de locais especiais de “uso seguro” das drogas para dependentes graves. Nesses espaços não haveria repressão ao consumo. Os viciados seriam estimulados a substituir drogas pesadas por outras supostamente leves, como a maconha. A pretensa inocuidade da maconha termina, muitas vezes, no sequestro da esperança e do futuro.
Observa-se, na contramão da realidade que grita nas trágicas esquinas da cracolândia, um crescente movimento a favor da descriminalização das drogas, sobretudo da maconha. Bandeira frequentemente agitada em certos setores do entretenimento e em alguns redutos de profissionais da saúde pública, a descriminalização não ajudará nada. Ao contrário. Agravará, e muito, o drama das pessoas e da cidade.
A verdade precisa ser dita. Não se pode sucumbir à síndrome da avestruz quando o que está em jogo é a vida das pessoas. O hediondo mercado das drogas está dizimando a juventude. Ele avança e vai ceifando vidas na cracolândia, nos barracos da periferia abandonada e no auê dos bares e boates frequentados pela juventude bem-nascida. Movimenta muito dinheiro. Seu poder corruptor anula, na prática, estratégias meramente repressivas. A prevenção e a recuperação, as únicas armas eficazes em médio e longo prazos, reclamam apoio mais efetivo do governo e da iniciativa privada às instituições sérias que lutam pela reabilitação de dependentes. Elas rompem o círculo vicioso das drogas e criam o círculo virtuoso da recuperação e da ressocialização. É sempre melhor apoiar o que já funciona do que cair na tentação de criar novas estruturas.
São Paulo e o Brasil precisam encarar a realidade. A operação na cracolândia, desmantelando um espaço cruel e vergonhoso, teve o mérito de abrir o debate.