O Globo
Onde vocês estavam no dia primeiro de abril de 1964? Pois bem, eu estava na UNE
São 11 e meia da noite do dia 31 de março de 1964 e eu assisto a um show que inaugura o teatro da UNE, com Grande Otelo, Nora Ney e Elza Soares. Acho estranho que festejem uma vitória sem a tomada do poder. Mas um companheiro me abraça eufórico: “Já derrotamos o imperialismo; agora só falta a burguesia nacional!” Não vejo o Tio Sam de joelhos ali, mas fico animado: “Viva!” Estou felicíssimo: tenho 20 anos, o socialismo virá, sem sangue, sem balas e com a ajuda do governo do Jango. Sentíamo-nos o “sal da terra”.
Eu pensava: “Conscientizarei as massas pobres do país para um futuro justo e feliz”. Cheio de fé, vou para casa, mas voltarei cedo à UNE onde haverá uma reunião politica às nove da manhã.
Estou de novo dentro da sede, ouvindo as diretrizes do dirigente de nossa “base” do PCB, um comuna velho de nariz de couve-flor, e penso: “Como ele pode fazer revolução com esse nariz?”
Ele nos garante que o Exército está do lado do povo, porque tem “origem de classe média”. Sinto-me protegido pelos bravos soldados do povo, quando começo a ouvir gritos e tiros lá fora. Corremos todos para a sacada e vemos dezenas de estudantes que apedrejam a fachada, atirando para o alto. “São os estudantes de direita da PUC. Temos de reagir!” — diz alguém. “Com quê?” — pergunto. Onde estão as armas revolucionárias? Nada. Ninguém tem uma reles Beretta.
O dirigente da “base” fica com o nariz muito branco, que antes era pink. Nuvens de fumaça entram pelas salas. A UNE está pegando fogo. Estudantes armados invadem a sede com garrafas de gasolina.
O teatro queima. Fujo por uma janela dos fundos, onde rasgo a calça num prego. Apavorado, corro para a porta da UNE, ostentando naturalidade, para ver o que está acontecendo. Reconheço vários colegas ricos de minha faculdade, com revólveres na cinta, numa selvagem alegria destrutiva. Dois colegas da PUC me veem. Eles vêm com armas na mão, afogueados pela guerra santa.
“E aí, cara!? Grande vitória, hein?! Acabamos com esses comunas sem-vergonha!” — me gritam, arquejando de contentamento. Se tivesse a automática 45mm de meu pai milico, entraria num duelo de western com eles. Eles me olham. Estou pálido, mas tenho a dignidade de não dizer nada. Viro as costas e saio andando pelo asfalto, esperando o tiro me derrubar. Procuro com os olhos os bravos soldados do “Exército democrático”. Surge um comboio de tanques. Passa por mim um companheiro que sussurra: “Some, porque o Exército virou a casaca!”.
Vejo os tanques, com os “recrutas do povo” montados em cima, e entendo que minha vida adulta está começando, mas de cabeça para baixo. Outros companheiros se dispersam à distância, enquanto a UNE arde. “Ali estão queimando os nossos sonhos” — penso — “ali queima a ‘libertação do proletariado’, ali morre em fumaça minha juventude gloriosa, queima um Brasil que me parecia fácil de mudar, um Brasil feito de esperanças românticas”.
Lembro-me do comício da Central, 15 dias antes, quando senti um arrepio vendo o Jango falar em “reformas populares” sem convicção, entre as tochas dos petroleiros e perto da mulher Tereza, vestida de azul, ausente e linda. Lembro-me também das velas acesas nas janelas da cidade pela classe média, de luto contra Jango, e lembro-me que pensei: “Isso vai dar bode!”.
Agora, a UNE pega fogo como uma grande vela. Vou andando para longe dali, para o Centro, e as árvores do Russel me ameaçam com seus galhos, vejo a estátua de São Sebastião flechado e me sinto mártir como ele, passo pela Praça Paris, onde Assis Valente se matou com formicida, e penso em sua música: “Está na hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor!..”.
Chego ao Passeio Público cercado de carros de combate e vejo que o mundo mudou. Sento-me perto de um laguinho e fico vendo os rostos das pessoas, mendigos com latinhas e sacos de aniagem, uma mulher bêbeda dançando, vejo o Rio pela primeira vez, como se tivesse acordado de um sonho para um pesadelo. As pessoas se movem em câmera lenta, as buzinas estão altas demais no trânsito engarrafado, e eu me sinto exilado em minha própria terra. Na Cinelândia, grupos de soldados montam guarda. São recrutinhas fracos, com capacetes frouxos e cara de analfabetos; o povo monta guarda contra nós.
Numa vitrine, televisões mostram o Castelo Branco entre generais. Este é o novo presidente? Parece um ET de boné. Vou andando, sem lenço e sem nada. Paro na porta de um cinema onde passa “Lawrence da Arábia”. Finjo que olho os cartazes. Alguém me bate no ombro; viro em pânico e vejo um velhinho vendedor de loteria, que me segreda: “Sua calça está rasgada atrás...” Apalpo o grande estrago do prego da UNE e saio mais tonto.
“Meu Deus... eu que imaginava os grandes festivais do socialismo com Lênin e Fidel, eu que era um herói, virei um bunda-rasgada!” Percebo que um Brasil ridículo, que sempre esteve ali, está vindo à tona. Ninguém quer me prender. Sou invisível. Vejo um ônibus que vai para minha casa. Me jogo dentro. Passo em frente à UNE e não quero olhar, pois sei que vou ver o fogo, bombeiros apagando. Não resisto, e o casarão preto passa, entre brasas e fumaça.
Chego em casa, trêmulo. Minha mãe está com duas tias na sala. Uma delas, carola de igreja, que marchou pela Família, Deus e Liberdade, me beija muito e diz: “Toma aqui essa medalhinha de Santa Terezinha do Menino Jesus pra te proteger!..” E pespega em minha blusa a santinha com uma fita vermelha. Meu desespero é indescritível. Minha mãe me abraça chorando: “Ele não é comunista, não!.. Ele é bom, bom! Está pálido, meu filho... Come esse bolinho de milho...”
Fico olhando os bibelôs da sala, mastigando o bolo. Vejo os elefantes de louça, o quadro do Preto Velho, os plásticos nas poltronas, o lustre de cristal, orgulho de mamãe. E, afinal, entendo que minhas tias estão no Poder e que eu não existo.
(*) Este artigo é reprodução de um texto que escrevi há quatro anos. Mas, diante da data de hoje, creio que vale a pena ler de novo.