O Globo
Dilma não gosta do Itamaraty, acha os tempos da diplomacia longos demais e as notas explícitas de menos. Enquanto isso, o país perde espaço no mundo
Dilma não esquece jamais, cobra. A presidente espera a cena final da história iniciada com uma ação cinematográfica: um diplomata brasileiro atravessando fronteiras com um boliviano escondido no carro, escoltado por fuzileiros navais. Eduardo Saboya, o autor do movimento audacioso e desesperado, foi congelado num obscuro departamento de investimentos financeiros do Itamaraty, mas agora está tirando uma licença especial enquanto espera as conclusões da comissão disciplinar que analisa sua defesa: em nome dos direitos humanos, o diplomata acabou “na marra” com o confinamento imposto por Evo Morales ao senador Roger Pinto Molina, um inimigo político, na época já há 15 meses albergado na Embaixada brasileira de La Paz à espera de um salvo-conduto que nunca chegou.
O prazo para desvendar este inusitado momento das relações internacionais era de três meses. A pedido da defesa, foi prorrogado por mais três, que terminam em maio. O governo intui que o Itamaraty preferia esquecer esta passagem negra nas relações com o Planalto, motivo da penosa demissão de Antonio Patriota — a presidente foi a última a saber da história, porque o ministro também teria sido surpreendido pelos acontecimentos.
Saboya tem na ponta da língua os nomes dos que acompanharam o processo de decisão para tirar o senador da Bolívia e ainda pode causar novos constrangimentos. Enquanto o imbróglio continua a se desenrolar nos bastidores, o Congresso recusa-se a aprovar o novo indicado para assumir a Embaixada do Brasil na Bolívia.
Esta é apenas uma das crises nas relações internacionais do Brasil congeladas enquanto a presidente ocupa-se em debelar incêndios no front interno, maiores e mais devastadores num ano de eleição. O jeito Dilma de comandar pessoalmente a diplomacia brasileira deu-lhe codinome nada elogioso nos corredores do Departamento de Estado dos EUA — o mesmo usado por Lady Di para se referir à rainha Elizabeth.
À espera de um pedido de desculpas de Obama por causa do grampo no telefone da presidente, Dilma recebeu as credenciais da nova embaixadora americana, mas evitou qualquer gesto de aproximação. “Nas primeiras semanas depois da revelação do escândalo, o diálogo foi interrompido completamente, mas lentamente tende a se normalizar”, diz um diplomata americano no Brasil. Foi retomado, claro, mas está longe da lua de mel percebida pela subsecretária do Hemisfério Ocidental, Roberta Jacobson, há pouco mais de um ano.
Os EUA, discretamente, multiplicam os movimentos de boa vontade: o secretario de Estado, John Kerry, foi o primeiro a confirmar a participação americana na Net Mundial em São Paulo, a conferência liderada pelo Brasil para atacar a hegemonia dos EUA na rede — as metas mais ambiciosas foram deixadas de lado, mas pequenas vitórias aconteceram. Americanos ajudam com informações sobre segurança em grandes eventos e, entre os 30 representantes ilustres de países estrangeiros esperados na Copa, estará o vice-presidente Joe Biden.
“As relações não estão congeladas mas, para avançar mais, dependemos de um sinal da Presidência”, diz um embaixador brasileiro.
Dilma não gosta do Itamaraty, acha os tempos da diplomacia longos demais e as notas explícitas de menos. Ano passado, fez questão de dizer ao ministro que ela — e não o Itamaraty — elegera Roberto Azevedo para comandar a OMC, uma vitória certamente conquistada com a ajuda dos colegas da carreira. Uma vez, ao discursar na formatura do Rio Branco, perguntou quantos engenheiros havia no grupo: nenhum, claro, e ela reclamou que a diplomacia brasileira precisava de um perfil mais técnico. O desamor é recíproco, e a maioria acha que nunca o Ministério das Relações Exteriores foi tão desprestigiado.
A outra encrenca congelada é o Mercosul, crise agravada desde a entrada da Venezuela. Foi sob o comando de Dilma que o Brasil colocou-se firmemente do lado de Nicolás Maduro, evitando de início qualquer condenação à repressão dos protestos. Há um mês, o ministro Luiz Alberto Figueiredo é um dos três mediadores da crise e todas as quartas-feiras tem enfrentado a viagem a Caracas para fazer o meio de campo na polarizada cena política — os partidos vão da extrema-esquerda à direita nazista, mas centristas não existem e, por isso, os mediadores desempenham o papel que seria deles, o de botar governo e oposição para conversar.
Nada indica que os resultados virão em breve e, com a violência política no país, fica impossível realizar a reunião do Mercosul em Caracas, adiada sucessivamente e agora sem data prevista para acontecer. Enquanto isso, a Argentina aumenta as barreiras tarifarias, o acordo com a União Europeia atrasa e — no dizer de um diplomata — o Brasil carrega as correntes pesadas do Mercosul.
Política externa não influencia eleição, mas molda a imagem e a credibilidade de um país. Nós, que sofremos até quando não temos representantes na lista dos cem mais da “Time”, estamos esquecendo o papel da diplomacia e perdendo espaço no mundo.