quarta-feira, 2 de abril de 2014

Campo de prisioneiros nos EUA vira relicário do nazismo

 

Dan Barry
Em Charleston, Carolina do Sul (EUA)
 

Relíquia de campo de prisioneiros nos EUA vira relicário do nazismo                   

 
Chaminé construída por prisioneiros de guerra alemães que foram trazidos para os EUA nos anos finais da Segunda Guerra Mundial é preservada em área rural de Charleston, Carolina do Sul (EUA). Apesar da vontade da família proprietária atual das terras querer derrubar a chaminé, alguns querem guardá-la como um pedaço da história Nicole Bengiveno/The New York Times

Uma chaminé de lareira solitária se projeta cerca de 7 metros acima de um terreno baldio limpo, não distante do vai e vem das águas do Rio Ashley. O único calor que ele produz é por estar no centro de uma disputa em torno da mais mundana das questões, zoneamento.

Mas a chaminé é como uma instalação de arte controversa. Vista por um ângulo, ela é um artefato histórico raro que deveria ser preservado. Vista por outro, é um memorial ao mal que deveria ser demolido ou levado embora.

Alimentando essas brasas quentes de emoção estão as palavras gravadas em uma placa de concreto no topo da chaminé: Prisioneiros de guerra alemães 19-01-1945

Uma história verdadeira: essa chaminé, plantada como um carvalho sem galhos em uma rua residencial, foi construída pelos soldados alemães presos durante o último ano da Segunda Guerra Mundial.

As autoridades municipais e preservacionistas querem proteger a chaminé como um pedaço de uma América esquecida. Mas os donos da propriedade, membros de uma proeminente família de Charleston, a veem como mais do que um obstáculo aos seus planos de construção. Eles são judeus e a querem removida.

"Toda vez que vejo a estrutura, ela me faz lembrar dos fornos", diz Mary Ann Pearlstine Aberman, 79 anos, que é coproprietária do lote. "Eu não vejo nenhum motivo para se fazer um memorial aos nazistas."

Algumas coisas precisam ser lembradas e algumas não, ao que parece.

A história começa no início, com a carta inglesa que estabeleceu a colônia da Carolina em 1669. Escrita pelo filósofo John Locke, a carta concedia liberdade de consciência aos seus colonos, incluindo "judeus, pagãos e dissidentes".

Em 1750, os judeus de Charleston estabeleceram uma sinagoga. No início dos anos 1800, eles representavam a maior população judaica do país. Entre eles estavam os Pearlstines, cujo mercado e a empresa de ferragens se transformou em uma conhecida distribuidora de cerveja.

Milton Pearlstine, o pai com mentalidade cívica de Aberman, personificava o laço entre família e lugar. Ele se formou na faculdade militar Citadel, exerceu um papel vital no desenvolvimento do porto estadual e, em 1935, doou à cidade o velho Planter's Hotel, que agora é o popular Dock Street Theater.

Menos de uma década depois, soldados alemães - servindo a uma ditadura que queria aniquilar os judeus– chegaram como prisioneiros de guerra à sua amada Charleston.

Durante a guerra, mais de 400 mil soldados inimigos capturados foram enviados aos Estados Unidos para viverem em campos de prisioneiros e fornecer mão de obra altamente necessária, especialmente nas fazendas e moinhos. Até 10 mil foram enviados à Carolina do Sul.

O maior dos campos de Charleston ficava em West Ashley. Construído para 500 presos em uma área de sete hectares próxima do Rio Ashley, ele era cercado por arame farpado, torres de vigilância de 7,5 metros de altura, alguns poucos prédios e 30 tendas grandes.

Na cerimônia de abertura em 1944, os guardas do campo perderam uma partida de softball para um padre Sheedy, que jogava pelo time local Knight of Columbus. O entretenimento também incluiu um cabo fazendo truques de mágica e três soldados se apresentando como uma banda caipira chamada "P.O.W. Wows".

Esses campos inicialmente causaram apreensão e revolta em casa, segundo Fritz Hamer, curador e historiador do sistema de biblioteca da Universidade da Carolina do Sul. "Mas ficou claro que a vasta maioria daqueles presos estava feliz por estar fora da guerra", ele diz. "Eles recebiam três refeições por dia e muitos gostavam de ter uma rotina diferente fora dos campos."

O fato de terem cruzado o Atlântico não removia de todos os soldados alemães suas fidelidades nazistas. Um jornal local noticiou posteriormente que os prisioneiros de guerra do campo certa vez entalharam suásticas em um grande carregamento de tomates, e que nos fins de semana, um sargento nazista, "trajando seu uniforme Panzer e com botas polidas com esmero, desfilou pela prisão como se a qualquer momento Rommel pudesse passar em revista".

Por um breve período surreal, esses soldados alemães fizeram parte da vida rural de Charleston. Os prisioneiros de guerra eram enviados aos produtores rurais pela manhã e voltavam ao entardecer. O encarceramento deles era confortável.

O campo foi demolido depois da guerra. Por algum tempo, sua sede multiuso foi usada para jantares locais e reuniões dos escoteiros, mas logo tudo o que restou da estadia do inimigo foi a chaminé de tijolos.

Charles Means, 59 anos, que mora nas proximidades, diz que seu avô, Cotesworth P. Means, era dono da propriedade usada pelo campo e que a família costumava realizar reuniões de vizinhos em torno da antiga lareira dos prisioneiros de guerra.

Após o desenvolvimento imobiliário de grande parte da propriedade, a família Means vendeu o desmembramento contendo a chaminé em 1994. Dois anos depois, ele foi vendido de novo, para os Pearlstines, que eram donos do desmembramento vizinho à beira do rio e pensavam em construir um acesso à estrada principal passando pelo terreno.

No mundo pequeno de Charleston, Milton Pearlstine e Cotesworth Means, ambos mortos àquela altura, serviram juntos na autoridade portuária estadual e eram amigos. Pearlstine viveu seus últimos anos na propriedade atrás do lote com a chaminé, da qual ele podia ver a outra margem do rio e os prédios brancos de sua faculdade, Citadel.

Desde então, os Pearlstines estiveram várias vezes perto de derrubar a chaminé. Isso nunca aconteceu, em parte porque o foco mudou quando a parente que cuidava do assunto, a irmã de Aberman, Barbara Pearlstine Lemel, morreu após uma longa doença.

Um trator apareceu certa vez, mas os vizinhos alertaram as autoridades do condado e uma violação foi decretada. Licenças de demolição foram obtidas, mas nunca executadas. A família diz que estava tentando um acerto com aqueles que se ofereceram para remover a chaminé, mas nunca o fizeram.

Finalmente, em janeiro, os Pearlstines requisitaram que seu lote fosse anexado à zona urbana e seu zoneamento passasse a ser de imóvel residencial. Mas quando as autoridades de planejamento municipais souberam da relíquia do campo de prisioneiros, elas propuseram proteger a chaminé como um marco histórico.

Se essa designação for aprovada pela Câmara Municipal, os Pearlstines terão que preservar a chaminé a menos que obtenham uma permissão especial para demoli-la. Em outras palavras: seria pedido a judeus para que mantivessem uma relíquia construída pelos nazistas em sua propriedade.

Muitos vizinhos também se manifestaram, incluindo Lew Fink, 66 anos, que mora na casa branca ao lado do lote. Ele reconhece que prefere que não construam no terreno, mas também disse que a chaminé deveria ser preservada para fins educativos.

"Ela diz que um homem não teve sucesso em tentar governar esta Terra", diz Fink, que é judeu. "É uma afirmação de que vencemos."

Nada disso cai bem para o filho de Mary Ann Aberman, Mickey Aberman, 57 anos, um advogado da Carolina do Norte. Ele não consegue esquecer uma conversa que teve em um casamento da família há vários anos com uma parente mais velha, que lembrou ter escapado pela floresta enquanto soldados nazistas matavam seus pais e irmãos.

Nem consegue se livrar da imagem de soldados alemães bem tratados aquecidos por aquela lareira, cantando o hino nazista "The Horst Wessel Song". Ele não se importaria tanto, ele diz, caso soldados alemães tivessem morrido ali.

"Se pessoas quiserem vir ver onde os soldados alemães ficavam sentados durante a guerra, é apenas..." ele diz, fazendo uma pausa, imaginando o relativo conforto deles. "Um tipo de raiva cresce, que não estaria ali caso aquilo fosse apenas um amontoado de tijolos."

Vários dias atrás, Aberman estava diante da lareira dos prisioneiros de guerra, com sua indignação evidente. O jardineiro que sua mãe contratou para manter o terreno limpo estacionou sua caminhonete para dizer que a chaminé realmente deve ser preservada.

Aberman começou a pregar um sermão sobre história, mas suas palavras não encontraram receptividade. Ciente da resposta antecipadamente, ele perguntou ao homem se queria comprar a propriedade, com chaminé, lareira e tudo.

Tradutor: George El Khouri Andolfato