sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Análise: Obama também foi um comandante para a cultura popular dos EUA

Wesley Morris 



  • Manuel Balce Ceneta/AP
    22.nov.2016 -Ellen DeGeneres chora ao receber a Medalha da Liberdade de Barack Obama
    22.nov.2016 -Ellen DeGeneres chora ao receber a Medalha da Liberdade de Barack Obama
Qualquer pessoa inclinada a se alegrar quando o gosto do presidente bate com o seu tinha muitas opções com Barack Obama. 
Houve a vez em que ele apareceu na garagem em Los Angeles onde o humorista Marc Maron grava seu podcast, ou quando se sentou entre as duas samambaias onde Zach Galifianakis finge ser um idiota apresentando um talk show.
Em 2015, no Jantar da Associação dos Correspondentes da Casa Branca, ele apresentou um esquete com Keegan-Michael Key como Luther, o fictício, mas legitimamente irado "tradutor de raiva" de Obama do programa "Key & Peele".
Ele chamou Kanye West de imbecil, convidou Lin-Manuel Miranda à apresentação de poesia da Casa Branca para interpretar uma canção do musical "Hamilton", antes mesmo da peça se tornar um sucesso, e, por dois anos seguidos, apresentou playlists do Spotify amplamente convincentes.
Isso não inclui nem mesmo a conversa para o "New York Review of Books" (em duas partes!) entre ele a escritora Marilynne Robinson. Eles conversaram sobre... sobre... bem, é sério e oracular, de modo que você deveria ler. 
Mas de toda a cultura da qual Barack Obama fez parte, inspirou, comentou ou cultivou, de todas as formas como a cultura parecia evoluir ao redor dele e responder inconscientemente a ele, a coisa que diz muito sobre o relacionamento sem precedente dele com a arte e a cultura popular é na verdade, no grande esquema das coisas, apenas uma nota de rodapé.
Isso quer dizer que é bem pequena, mas muito ilustrativa de seu senso de respeito, profissionalismo e admiração. Foi a vez em que enviou um e-mail para uma citação. 
Brendan Smialowski/AFP
22.mai.2013 - Obama entrega prêmio para a cantora e compositora Carole King
A ocasião foi o Kennedy Center Honors de 2015. Entre os homenageados estavam Carole King, que estava sentada no camarote entre o também homenageado George Lucas e o primeiro casal. E durante o tributo a King, veio Aretha Franklin, que se sentou ao piano com um casaco de pele que ia até o chão e cantou "(You Make Me Feel Like) A Natural Woman", o clássico de autoria de King, que Aretha lançou em 1967.
A presença dela era esperada. O choque foi quão poderosamente bem, aos 73 anos, Aretha cantou, tão bem que você temia que o êxtase faria Carole King despencar do camarote, tão bem que Obama enxugava lágrimas de seus olhos. 
Para um perfil crítico de Aretha Franklin na revista "The New Yorker", seu editor, David Remnick, contatou o presidente. Como crítico, sinto o dever de apontar que trata-se de uma decisão incomum. Remnick também é, entre outras coisas, um crítico. Ele conhece o valor de Aretha Franklin como tesouro americano e que não tem preço. Ele está mais que capacitado a resumi-la. Mas ele terceirizou esse trabalho. Ao presidente dos Estados Unidos.
E se você chegou àquele trecho daquela história e pensou em virar os olhos ("Quando contatei o presidente Obama por e-mail sobre Aretha Franklin e aquela noite..."), você imediatamente se retratou quando leu a resposta escrita por Obama. 
"Ninguém personifica mais plenamente a conexão entre o gospel afro-americano, o blues, o R&B, o rock and roll, a forma como as dificuldades e a tristeza são transformadas em algo cheio de beleza, vitalidade e esperança", ele escreveu, por meio de seu secretário de imprensa.
"A história americana jorra quando Aretha canta. Esse é o motivo, quando ela se senta ao piano e canta 'A Natural Woman', para poder me levar às lágrimas, da mesma forma que a versão de 'America the Beautiful' de Ray Charles sempre será, ao meu ver, a peça de música mais patriótica já interpretada, por capturar a plenitude da experiência americana, a visão tanto de baixo quanto de cima, do bom e do ruim, e a possibilidade de síntese, reconciliação, transcendência." 
Remnick escreveu para ele porque sabia que Barack Obama não falharia. Remnick pediu uma pequena contribuição. O presidente lhe deu uma grande.
Obama, ao longo de quase toda sua presidência, estava plenamente ciente, interessado e conhecedor da cultura popular, mesmo diante da impossibilidade de acompanhar tudo. Ele tentou: esportes, filmes, televisão, internet, música, livros. Ele foi multiforme e católico. Foi pensativo e autodepreciativo, bacana e longe disso. Ele foi uma versão do pai da América e o pai que algumas crianças gostariam o que delas pudesse ser: apto tanto para liderança mundial quanto para uma sitcom. 
Muitas pessoas inteligentes estão debruçadas sobre o retrospecto de Obama para prognosticar um legado. Que políticas durarão? Como ele mudou o cargo? Como ele se distinguiu? Mas esta foi uma presidência cujos fracos cheiros de escândalo incluíram ser gravado furtivamente por Usher no ano passado, dançando de forma indiferente a "Hotline Bling" de Drake, que já tinha sido lançada havia mais de um ano. Mas vamos ser justos: é uma canção viciante, e ele se movia como alguém que a dançava desde que foi lançada. 
Em outras palavras, a posição de Obama na cultura popular sempre pareceu nova, viva e, principalmente, subapreciada. 
Obviamente, outros presidentes tiveram um relacionamento com a cultura americana. A televisão estava em sua infância criativa quando Dwight D. Eisenhower tomou posse em 1953, e ele rapidamente tirou proveito do poder de seu imediatismo. Quando John F. Kennedy fez 45 anos, ele recebeu o "Parabéns a Você" mais famoso da história americana cantado por Marilyn Monroe. Mas foi a tragédia e uma esposa glamourosa que asseguraram o legado de Kennedy na cultura popular.
Richard Nixon não gostava do programa "Tudo em Família" e era um ávido fã de cinema, que segundo o surpreendente livro de Mark Feeney, "Nixon at the Movies" (Nixon no cinema, em tradução livre, não lançado no Brasil), assistiu cerca de 500 filmes durante sua presidência. Ronald Reagan era um ator de Hollywood antes de ser político, e, como candidato, Bill Clinton se destacou na MTV e no talk show de fim de noite de Arsenio Hall. 
Mas algum presidente se mostrou tão proficiente na arte e cultura popular deste país quanto Barack Obama? Quem se dedicou tanto a abrir a Casa Branca a artistas de todo tipo quanto ele? Almoços com os romancistas Zadie Smith, Barbara Kingsolver, Junot Díaz, Dave Eggers e Colson Whitehead. Um almoço, na verdade. Esse foi apenas um almoço.
Iniciativas que incluíram Alicia Keys, Nicki Minaj, J. Cole, Ludacris, Rick Ross, Pusha T., Common e Chance the Rapper. (Tantos rappers e cantores de R&B diferentes passaram pela Casa Branca nos últimos oito anos que o prêmio BET poderia processar por violação de direitos autorais.)
No ano passado, Barack e Michelle Obama promoveram o "Jazz na Casa Branca", que contou com tantas pessoas magníficas e importantes que listá-las todas (Chick Corea, Dee Dee Bridgewater, Aretha Franklin, apenas para começar) seria como elaborar uma lista de fantasia. 
Um dos eventos culturais mais felizes que já vi foi a cerimônia da Medalha Presidencial da Liberdade em novembro. A condecoração foi dada a 21 homens e mulheres, de Robert De Niro, Tom Hanks e Michael Jordan até Cicely Tyson, Diana Ross e Ellen DeGeneres. Bill e Melinda Gates foram homenageados. Assim como Maya Lin e Robert Redford.
Obama contava com bom material para a maioria deles, filantropos, astros de cinema, arquiteto e assim por diante. E, como faz com frequência e não recebe crédito suficiente por isso, ele o fez com humor com timing perfeito. Apesar de suas brincadeiras, algumas delas pareciam significar tudo. 
As críticas a Obama eram de que ele era seco e indiferente. Talvez, mas nem sempre. Ele entende o que risos podem fazer. Ele entende o poder das canções. Ele entende o poder dos cantores, mesmo quando a única pessoa cantando era, no início, ele sozinho. 
Getty Images
26.jun.2015 - Obama canta "Amazing Grace" no memorial de Charleston
Em 2015, no memorial após o massacre em Charleston, ele fez uma deliberada pausa dramática antes de cantar a letra de "Amazing Grace". Ele começa e o coro atrás dele se ergue, de surpresa. Você consegue perceber que ele não está cantando por achar que sua voz barítona é boa. Ele canta porque algo o toma, da mesma forma que ocorre comigo, da mesma forma que ocorre com muitas pessoas.
O que parece ter lhe tomado naquele memorial é tanto uma santidade sincera quanto um reconhecimento raro, particularmente poderoso, da glória e do risco trágico de ser negro e americano: ele tinha que cantar. Naquele momento, aquela canção era tudo o que ele parecia ter. Não é uma sensação que você sai à procura. Ela é que encontra você. 
Bons historiadores tendem a saber o momento certo para avaliar o lugar de um presidente. Eles aguardam até a presidência ficar para trás, para a mistura certa de distanciamento e saber. Enquanto isso, o desempenho de Barack Obama como presidente - seu desempenho de fato no papel de presidente dos Estados Unidos - foi impecável.
Culturalmente falando, ele não usou seu cargo para animar, esclarecer ou entreter, mas sim para compartilhar. Ele escreveu para Remnick que amava a versão de "America the Beautiful" de Ray Charles, por "capturar a plenitude da experiência americana, a visão tanto de baixo quanto de cima, do bom e do ruim, e a possibilidade de síntese, reconciliação, transcendência".  
O homem conhece seu país e seu Ray. Mas é totalmente possível ler aquela citação e sentir um calafrio, porque Obama poderia facilmente estar escrevendo sobre si mesmo.

Tradutor: George El Khouri Andolfato