O governo de Jair Bolsonaro vai ampliar a militarização na máquina pública federal, com a entrega para a Marinha de postos de comando nas superintendências de portos, no Ibama e no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio). Após a nomeação para ministérios importantes, os militares agora são chamados a ocupar também cargos no segundo e terceiro escalões. Veja aqui o mapa completo de onde estão os militares no governo.
Trata-se de uma nova fase do movimento crescente de escolha de oficiais da reserva das Forças Armadas para posições estratégicas e setores historicamente envolvidos em denúncias de corrupção. Levantamento feito pelo Estado contabiliza pelo menos 103 militares na lista dos cargos comissionados de ministérios, bancos federais, autarquias, institutos e estatais, entre elas a Petrobrás.
Segundo analistas, fatores como o desgaste da classe política e uma estrutura partidária ainda frágil do presidente Jair Bolsonaro permitem o avanço dos militares na burocracia federal.
Na última semana, foram escolhidos os almirantes da reserva da Marinha Francisco Antônio Laranjeiras e Elis Triedler Öberg para comandarem os portos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Norte, respectivamente. Para o cargo de diretor-presidente da Companhia Docas de São Paulo, que controla o Porto de Santos, o governo nomeou o engenheiro naval civil Casemiro Tércio Carvalho. Ele, no entanto, terá a seu lado um militar da Marinha para “sanear” o órgão e acabar com “entraves” burocráticos.
Em defesa desse movimento do governo, um oficial do Alto Comando das Forças Armadas disse que a escolha de militares para cargos de confiança tem por objetivo conferir credibilidade aos postos com base em “um modo eficiente de administrar”, com “zelo pelo dinheiro público”. Deputados que procuram o governo para pedir cargos nos Estados relatam que recebem de ministros um pedido: “Você tem um militar para indicar?”
Estudioso da relação entre as Forças Armadas e a sociedade brasileira, o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira afirmou que a participação de dezenas de militares em um governo eleito democraticamente é uma situação inédita no Brasil. E é resultado, segundo ele, da combinação entre a descrença que abateu a classe política e a inexperiência administrativa do novo presidente.
“É natural que ele queira se apoiar em pessoas da área dele e que respondam a essa espécie de ‘regime civil com governo verde-oliva’ que se instaurou no poder e tomou conta da máquina pública”, afirmou.
Ainda assim, para Oliveira, o movimento atual não pode ser comparado a um aparelhamento da máquina pública, a exemplo do que ocorreu nos governos do PT. A intenção agora, diz, não seria a preservação do poder sindical ou partidário, mas a gestão do governo. “O risco, neste caso, é o desprestígio das Forças Armadas em caso de insucesso.”
“Falar em aparelhamento me parece prematuro. O partido do presidente não possui uma estrutura orgânica e coesa. Há escassez de quadros. E, como o presidente não quer nomear gente apadrinhada pelo sistema político, é legitimo, nesse contexto, se servir de profissionais oriundos das Forças Armadas”, afirmou o cientista político Hussein Kalout, que atuou no governo de Michel Temer.
As nomeações nos portos aumentaram a presença militar na pasta da Infraestrutura. Até agora, o ministro Tarcísio Gomes de Freitas, um ex-capitão do Exército, nomeou dez militares da reserva, incluindo a chefia do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Com histórico de irregularidades e denúncias de corrupção, o órgão foi entregue ao general Antonio Leite dos Santos Filho.
Desde a redemocratização nos anos 1980, a área portuária sempre foi controlada pelo MDB. O ex-presidente Michel Temer enfrenta acusação por ter editado um decreto que teria beneficiado uma empresa no Porto de Santos. Ele nega.
Do quadro de reservas da Marinha também sairá o novo superintendente do Ibama no Rio de Janeiro. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, escolheu o almirante Alexandre Dias para a vaga. O maior número de militares está no Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações – 13 no total. O ministro Marcos Pontes se cercou de brigadeiros no seu gabinete e também escolheu nomes da reserva da Aeronáutica para chefiar as secretarias de Políticas Digitais e de Tecnologias Aplicadas.
Os militares abocanharam ainda cargos em pastas sem conexão com a caserna. No Turismo, o ex-deputado Marcelo Álvaro Antonio, do PSL, foi orientado pelo Planalto a nomear um militar da Marinha para o posto de corregedor e um coronel do Exército para o Departamento de Política e Ações Integradas.
Na gestão Bolsonaro, oficiais terão como desafio gerir áreas que vão além daquelas mais associadas a eles, como infraestrutura, ciência, tecnologia, mineração e energia. Terão, por exemplo, de administrar de uma estatal responsável por prestar serviços médicos ao Conselho Nacional de Educação, órgão que atua na formulação e avaliação da política educacional.
Na prática, a lógica dos quartéis será testada no serviço público na atual administração federal.
Ministros 'convocam' oficiais da reserva
Como não dispõem de um banco de dados de servidores para ocupar os cargos de confiança, entre eles os chamados DAS (Direção e Assessoramento Superior), a solução inicial encontrada pelo governo foi buscar militares na reserva das Forças Armadas. “Quando precisamos substituir inúmeras pessoas e trazer gente confiável, com capacidade técnica, carreira ilibada é muito difícil”, afirmou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Outra razão para a escolha dos militares, segundo o ministro, é a dificuldade de atrair profissionais da iniciativa privada, com a mesma qualificação, dispostos a receber salários que variam de R$ 2,7 mil e R$ 16,9 mil, valores considerados baixos em comparação aos pagos em cargos de direção.
Os militares da reserva já têm um salário base e, no caso de voltarem a trabalhar, recebem apenas uma complementação salarial. “É bom pra eles e é bom pra nós”, observou Salles.
O ministro nega que os militares estejam loteando o governo. “Somos nós que pedimos as indicações e que eles venham. Não são eles se impondo”, afirmou. “Há uma gama enorme de cargos de confiança, muito mal preenchidos, muitos deles aparelhados, ou com grau de comportamento questionável.”
O número poderá ser ampliado com a aprovação da reforma da Previdência. Como revelou o Estado, o texto permite aos militares da reserva exercerem atividades civis em qualquer órgão, mediante gratificação ou abono. Hoje, só podem ser aproveitados em funções militares ou ocupar cargos de confiança, o que limita o remanejamento.
Se as mudanças forem aprovadas, eles poderão exercer funções na administração federal sem ter de passar por concurso público. Isso aumentaria ainda mais o contingente de militares dentro do governo – além do presidente Bolsonaro e do vice-presidente Hamilton Mourão, há também oito ministros com formação militar. Uma fonte da ala militar confirma que existe no governo a intenção de ampliar o aproveitamento desse contingente de mais de 150 mil reservistas.
O governo não fecha as portas para os civis, mas busca neste grupo características que enxerga nos militares, como conduta ética e capacidade técnica. “Preenchendo os requisitos não tenho problema em receber indicações de governador, deputado, senador”, disse o ministro do Meio Ambiente. Em dezembro, a Justiça condenou Salles por improbidade administrativa quando foi secretário estadual de São Paulo. O ministro nega as acusações.
Em recente entrevista ao Estado, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo, disse ser contra dividir o governo entre civis e militares. “A sociedade quer que você governe para ela de maneira limpa, sem corrupção e que entregue o benefício no serviço público que ela precisa. Quem está dirigindo, para ela não interessa. Interessa a prestação do serviço público de qualidade e de maneira honesta”, observou.
Para o ministro, “a sociedade aceita perfeitamente bem” a presença dos militares no governo. “Quem faz essa discriminação é alguém interessado politicamente em fazer. Se a gente evitar viver aqueles dez anos de escândalos diários é isso o que o pessoal quer. A sociedade quer um governo limpo, transparente”, disse.
Três perguntas para Hussein Kalout, cientista político e ex-secretário de Assuntos Estratégicos
1. A oposição atacou os governos do PT por “aparelhar” a máquina pública. Essa critica também vale para o governo Bolsonaro? Existe um “aparelhamento militar” do governo?
O ângulo dessa comparação precisa ser analisado sob um escopo mais abrangente. O PT ficou 13 anos no poder e o governo Bolsonaro está há apenas dois meses no poder. Portanto, a comparação não me parece justa. Falar em aparelhamento me parece prematuro. O partido do presidente não possui uma estrutura orgânica e coesa. Há escassez de quadros. E, como o presidente não quer nomear gente apadrinhada pelo sistema político, é legitimo, nesse contexto, se servir de profissionais oriundos das Forças Armadas, provenientes de algumas das melhores instituições de ensino e pesquisa do País.
A chave dessa equação reside em duas avaliações, uma quantitativa e a outra qualitativa. Primeiro, do universo dos servidores nomeados, qual é a proporção de militares indicados? Não creio que seja assim tão expressivo. E, segundo, as pessoas indicadas possuem a formação, a competência e as qualificações necessárias? Temos que julgar as pessoas pela sua capacidade e pelo seus resultados.
2. Em que medida a indicação dos militares serve ao propósito de recuperar a imagem das Forças Armadas junto à população?
A instituição Forças Armadas já era bem avaliada pela população antes do presidente Bolsonaro ser eleito. No fundo, é o presidente que está se servindo da competência e do prestígio da instituição. É importante lembrar que de Sarney à Dilma, o sistema político brasileiro tomou a deliberada decisão de enfraquecer a instituição militar tracionando uma falsa narrativa de que isso estava a serviço do fortalecimento da democracia e do estado de direito.
Nos EUA, na Rússia e na China é comum indicar profissionais egressos das forças armadas para posições estratégicas. Nós, no Brasil, precisamos quebrar esse estigma.
3. O sentido de disciplina e pragmatismo dos militares será suficiente para vencer a enorme burocracia que costuma emperrar da máquina pública no Brasil?
É histórica a dificuldade de ministros de “transformar em realidade” boa parte das suas ordens. O Estado foi capturado pelo corporativismo e pelas corporações sindicais. Enquanto isso não for desmantelado, não há como melhorar a gestão pública.
Melhorar a eficiência da máquina e racionalizar o seu funcionamento requer um esforço coletivo e reformas estruturais. Enquanto o interesse político se sobrepuser aos interesses do Estado, ai não há como materializar nada.
Tânia Monteiro, Adriana Ferraz, Carla Bridi, Matheus Lara e Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo