O brasileiro Roberto Azevêdo tem uma longa carreira diplomática. Já trabalhou nas embaixadas do Brasil em Washington e Montevidéu entre 1988 e 1994 e integrou o Ministério de Relações Exteriores por mais de uma década. À frente da Organização Mundial do Comércio (OMC) como diretor-geral, posto que ocupa desde 2013, em segundo mandato com término previsto para 2021, Azevêdo enfrenta a difícil missão de supervisionar as decisões tomadas pelos representantes dos 164 países que integram a entidade, sediada em Genebra, na Suíça. Apesar do papel moderador, ele não pode interferir na autonomia dessas nações. Diante de críticas internacionais sobre a ineficiência da organização, Azevêdo encabeça sua reestruturação com o objetivo de torná-la mais ágil frente aos desafios da globalização. Em sua passagem pelo Brasil, conversou com ISTOÉ sobre as vantagens para o País de abrir mão dos benefícios da OMC para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como propôs o presidente Donald Trump ao presidente Jair Bolsonaro. Para Azevêdo, o ingresso na OCDE “é um passo importante” para o Brasil.
Qual é a opinião do sr. sobre o posicionamento do governo brasileiro de abrir mão dos benefícios da OMC para tentar entrar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)?
Eu não tenho a menor dúvida sobre a qualificação do corpo diplomático e da equipe econômica. Então com certeza a estimativa deles é que o saldo é positivo. Ingressar na OCDE é um passo importante. Não é apenas pelo selo de qualidade. É também por participar de um processo sobre boas políticas públicas e de negociações que muitas vezes são depois transplantadas para outros foros. Acordos internacionais começam a ser discutidos na OCDE.
Não é um risco o Brasil sair agora da OMC sem ter a garantia de entrada na OCDE?
Há muitos pontos de interrogação do que isso significa na prática. O custo de abrir mão de espaços de tratamento especial ou diferenciado na OMC depende do tipo do entendimento que foi feito e como isso será implementado. O Brasil tem se desenvolvido e eu acho que hoje está em condições de contribuir de uma forma mais aprofundada que no passado.
A classificação que a OMC faz dos países em desenvolvimento é uma reclamação dos Estados Unidos. Como isso pode ser resolvido?
Essa conversa entre os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, no sentido de o Brasil contribuir mais e abrir mão do espaço adicional dado ao país em desenvolvimento, é compatível a esse movimento. Os americanos querem que os países em desenvolvimento mais avançado deixem de ter tratamento especial e diferenciado. Segundo a proposta americana, mais de 30 nações entrariam em uma faixa que seria, vamos dizer, “graduada”. Por exemplo, você é graduado se é membro da OCDE, se é do G20, se tem uma participação superior a 0,5% do comércio mundial, se é classificado como um país de renda alta pelo Banco Mundial. O Brasil tem três dessas condições.
Quando isso passará a valer?
Não dá para saber, é só uma proposta. A impressão que eu tenho é que haverá acordos que serão negociados em um futuro mais imediato e que provavelmente serão concluídos antes que essa discussão termine. Pode ser que a maneira como se dará na prática o tratamento ao tema da graduação no acordo de comércio eletrônico inspire essa conversa. Os acontecimentos podem suplantar a discussão teórica.
Como o sr. considera a aproximação do Brasil com os EUA?
Eu acho que é natural, é a maior economia do mundo. É um país com quem o Brasil sempre teve relações muito próximas. Com a afinidade que existe hoje em termos políticos e ideológicos, é natural que se procure uma aproximação ainda maior. Mas ainda está cedo para saber os frutos concretos e quantificáveis.
O sr. acha que a OMC está enfraquecida nesse momento?
Não, muito pelo contrário. Atualmente estão acontecendo mais coisas do que as pessoas imaginam. Os embaixadores estão indo às reuniões e há negociação acontecendo para todos os lados.
Quais são as principais dificuldades de se chegar a um consenso na OMC?
O número de membros aumentou muito. Nós hoje somos 164 países, com diferença de interesses, graus de desenvolvimento, modelos políticos e econômicos, mas, sobretudo, ativos diferentes. Na época do GATT (o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, que em 1995 foi substituído pela OMC), você tinha um grupo pequeno de países homogêneos, a maior parte desenvolvidos, que determinavam, negociavam e colocavam as regras em vigor, e os outros países basicamente aceitavam e acompanhavam. Isso mudou. Todos estão muito mais participativos e atentos, até porque na OMC as regras são mandatórias. Conseguir consenso de 164 países nessas bases é complicado. É por isso que nós precisamos encontrar maneiras mais flexíveis de negociar. Há diversas discussões que estão em andamento e que incluem só alguns países. Isso facilita, porque estão nessas negociações apenas aqueles que se mostram a avançar em determinado assunto.
Alguns países, como os Estados Unidos, vêm criticando a OMC. Como está o plano de reforma da organização?
Quando eu assumi, em 2013, nós não tínhamos acordo há 18 anos e ficou claro que o sistema, como ele existia, teria grandes dificuldades. Começamos a fazer a reforma e finalmente conseguimos alguns entendimentos, como um acordo de facilitação do comércio, eliminação dos subsídios à exportação, a expansão do acordo de tecnologia da informação. Mas tudo isso foi insuficiente. Os Estados Unidos e outros países deixaram claro que estavam insatisfeitos com o sistema, achavam muito lento, com regras incompletas que não capturavam coisas que nações, como a China, faziam. Em dezembro, no G20, em Buenos Aires, os líderes pediram a reforma da entidade e ela está caminhando. A grande maioria dos membros hoje já se deu conta de que a mudança é uma necessidade.
O que precisa ser feito?
São três áreas. A primeira são os trabalhos regulares, melhorar as notificações e o funcionamento dos órgãos. A segunda é o mecanismo de solução de controversas. Os americanos têm reclamado muito, e inclusive bloquearam recentemente as nomeações para o órgão de apelação, o que, em dezembro, pode paralisar o mecanismo como um todo. E a terceira é a área das negociações. A reclamação é de que nós demoramos muito a responder às realidades do mundo moderno. Só agora, em janeiro de 2019, 76 países se reuniram e determinaram que iniciarão as negociações sobre comércio eletrônico. Nós precisamos encontrar maneiras mais ágeis e flexíveis de negociar.
Poderia adiantar quais mudanças serão feitas?
As discussões sobre o mecanismo de solução de controversas estão em andamento e há diversas propostas na área de funcionamento regular. Na área de negociação algumas já estão mais avançadas. No comércio eletrônico, por exemplo, o grupo que está discutindo a facilitação de investimentos está avançado, na área de regulação doméstica de serviços também. Há várias questões que os americanos já mencionavam, como os atritos que eles têm com a China. Eles gostariam de levar para uma discussão dentro da OMC, mas ainda não chegaram lá como proposta, estão somente em uma “antessala”.
Na área de comércio eletrônico, o que exatamente pode ser alterado?
O momento que estamos vivendo é de definição do que seria negociado. Algumas coisas são menos polêmicas, mas difíceis, como proteção ao consumidor, assinatura eletrônica, medidas de facilitação de comércio na fronteira, harmonização de plataformas. E outras são mais complicadas, como a garantia de fluxo livre de dados. Alguns países pedem que os servidores sejam instalados no seu território nacional, outros não querem isso, e outros acham que enrijece o comércio eletrônico e retira a competitividade das plataformas.
Quais são os apoios que a OMC tem no Brasil?
O governo Bolsonaro está apoiando a OMC, como é tradição do Brasil. Tem dito com muita clareza que é uma organização importante para o projeto de desenvolvimento, mas, como outros países, acha que há espaço para melhoras e está se engajando no projeto de reforma com propostas e contribuições.
Estamos vivendo uma ascensão da direita nacionalista e da busca por acordos bilaterais. Isso pode ser um sinal de que o multilateralismo perdeu força?
De maneira nenhuma, pelo contrário. As negociações bilaterais não competem com as multilaterais, elas se complementam. Do ponto de vista da OMC, quanto mais acordo bilateral, melhor, porque inspira negociações multilaterais. É a tradição.
E qual seria a razão dessa escalada protecionista?
O mercado de trabalho vem sendo muito impactado pelas inovações tecnológicas. Dos empregos que desaparecem nas economias modernas, 80% é em função de inovações tecnológicas e automação. Essa mudança estrutural cria tensões, já que a pessoa que perdeu o emprego não terá condições de ser empregada em outra função pelo fato de não possuir as qualificações técnicas necessárias. Essas tensões terminam sendo direcionadas equivocadamente a coisas que vêm de fora. É mais fácil culpar as importações e o imigrante do que desenvolver estratégias para lidar com a mudança. Uma das razões evidentes da tensão entre o Estados Unidos e a China é o saldo comercial extremamente positivo da China, e isso faz parte desse quadro que eu acabei de descrever.
Isso explica o ódio que estamos vivendo?
Também. Perda de soberania. Temos uma massa de pessoas dentro da sociedade que se sente abandonadas. Elas acham que o sistema as esqueceu. E no momento em que você tem uma integração internacional muito maior, elas começam a culpar a globalização pelas mazelas internas. Acho que essas mudanças estruturais têm de passar primeiro pelo diagnóstico correto e então minorar o impacto nas áreas negativas. Treinando o trabalhador com programas para recolocá-lo no mercado. O sistema de seguridade social tem de ser repensado.
Os conflitos entre EUA e China estão próximos de uma solução?
Há uma percepção de que uma escalada da guerra comercial entre os dois está prejudicando tanto a economia internacional quanto a economia dos dois países. Está havendo um genuíno esforço para encontrar soluções. Eu acho que não são essas soluções que vão resolver o problema do conflito entre as duas nações definitivamente, mas vão começar a desacelerá-lo.
Luisa Purchio, IstoE