“Não sei o que fizemos em vidas passadas para merecer isso? Mas deve ter sido muito ruim.”
O comentário irônico de Michael Deacon no Telegraph resume o espírito da coisa: divididos em grupos irreconciliáveis, os parlamentares britânicos eliminaram todas as oito possíveis alternativas sobre Brexit.
Na ausência do possível, resta o impossível: Theresa May consegue no último minuto uma minoria apertadíssima para seu acordo sobre a saída da União Europeia.
Depois, com um prazo suficiente para o Partido Conservador escolher um substituto, pega o silencioso e inabalável marido, as bijuterias espalhafatosas, os sapatos de oncinha e o que restar de sua dignidade, faz as malas e vai para a aposentadoria, tentar remendar o rótulo de pior chefe de governo de todos os tempos.
É isso ou prorrogar a agonia, sem que um prazo maior mude muito o impasse atual. Para reforçar última cartada, Theresa May garantiu que entende a necessidade de uma nova liderança.
A promessa foi arrancada pelo Comitê de 1922, ou “os homens de terno cinza”, políticos conservadores lá do fundão da bancada, chamados em inglês de backbenchers – impossível dizer “baixo clero” porque na Inglaterra a expressão designa literalmente o estamento clerical inferior da Igreja Anglicana que se rebelou contra os rituais requintados, copiados ao pé da letra dos católicos.
Em matéria da religião, o alto clero ganhou. Em política, o pessoal do fundão continua influente. “O 22”, como dizem os íntimos, reúne-se todos os dias no salão número 14 e vai vendo para onde sopra o vento.
Sua primeira decisão, tomada, claro, em 1922, encerrou o governo de coalizão de David Lloyd-George e deu origem à expressão “polícia do mundo”. O primeiro-ministro queria declarar guerra à Turquia, mas os conservadores do fundão não queriam que saísse policiando o mundo depois dos horrores da Primeira Guerra e a caminho do por do sol no império.
O mesmo comitê deu a palavra-chave para o fim de ninguém menos que Margaret Thatcher.
E por que os homens de cinza demoraram tanto comTheresa May, cuja atuação política foi resumida assim: a cada momento crucial, ela parou, pensou e tomou a pior decisão possível?
No meio das discussões sobre o Brexit, com correntes internas do partido em choque, a oposição trabalhista parecendo em determinados momentos em ascensão, o eleitorado conservador que votou pela saída em estado de revolta e nenhuma solução razoável à vista, a primeira-ministra, com nada menos do que vinte derrotas em votações parlamentares, sobreviveu pela excepcionalidade das circunstâncias.
Agora que sua saída está prometida, a sucessão vai comer solta. Os dois candidatos mais cotados pelas bolsas de apostas – Grã-Bretanha, lembrem-se – são Boris Johnson e Michael Gove.
Se alguém assistiu o filme Brexit e baseou sua opinião sobre os dois, os maiores defensores do desligamento entre os políticos conservadores, esqueça. Ao contrário dos personagens sem noção e matusquelas, ambos são intelectuais requintados, articulados e experientes nas maquinações internas.
Aliás, experientes demais. Durante os dramáticos dias da campanha pela sucessão de David Cameron, o primeiro-ministro que levou o Brexit a referendo, crente que nunca passaria, Michael Gove apunhalou Boris – “Pelas costas, pela frente e pelos lados” –, o que não fez muito bem à sua reputação.
Boris Johnson diz que, hoje, se arrepende de ter saído da disputa, abrindo caminho a Theresa May como candidata de consenso.
Com namorada nova muitos anos mais jovem, alguns quilos a menos e novo corte de cabelo, Boris também deu uma guinada espantosa: disse que votaria a favor da proposta de Theresa May, da qual foi um dos maiores adversários, porque a opção seria não ter Brexit nenhum.
Alguns poderiam ver nisso uma demonstração de pragmatismo um tanto cínico, o que não ajuda a diminuir uma oposição interna forte ao nome de Johnson.
As outras opções vão desde Dominic Raab, que deixou o governo justamente por discordar de Theresa May, tem estampa de primeiro-ministro e não faz papel de bufão, até Sajid Rajiv, atual secretário da Segurança, com moral depois de cassar a cidadania de “viúvas do Isis.
Seriam o primeiro judeu (desde o vitoriano e convertido Benjamim Disraeli) ou o primeiro muçulmano a chegar ao topo do governo.
Se o precedente da sucessão de David Cameron se repetir, será algum outro nome menos conhecido. Só não vale um genérico de Theresa May.
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