Num processo ainda em construção, o Brasil avançou consideravelmente no combate à corrupção estrutural e aos chamados crimes do “colarinho-branco”. Com avaliações convergentes, o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, e o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso apontam, em entrevista ao Estado, um legado positivo neste tema. “O Judiciário nos últimos tempos deixou de considerar que corrupção e criminalidade de colarinho-branco não eram crimes graves”, disse Barroso.
“Estamos mudando o padrão da impunidade da grande corrupção”, afirmou Moro, ex-juiz da Operação Lava Jato em Curitiba.
Moro e Barroso serão palestrantes de um debate sobre a Lava Jato e as Mãos Limpas, da Itália, nesta segunda-feira, 1.º, às 9h, na sede do Estado. O evento em parceria com o Centro de Debate de Políticas Públicas terá também a participação do procurador Deltan Dallagnol e da economista e estudiosa da teoria da corrupção Maria Cristina Pinotti, que vai lançar o livro Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas (Portfólio-Penguim e CDPP, 2019). Após as palestras, haverá um debate entre os participantes mediado pela jornalista Vera Magalhães, editora do site BR18 e colunista do Estado.
Segundo Moro, a diferença entre as duas operações é que, ao contrário do que ocorreu no caso italiano, que foi alvo de forte reação política após dois anos, a Lava Jato é um trabalho que “não foi desconstituído”. “O processo de cooptação que aconteceu na Itália dificilmente aconteceria aqui”, completou Barroso.
A Mãos Limpas foi um benefício para o País, mas até jornalistas italianos relatam que ela foi se esvaindo no tempo…
Se formos comparar as duas operações vamos encontrar algumas diferenças marcantes. Numericamente, a Mãos Limpas resultou em muito mais prisões, prisões cautelares. Mas, se formos verificar o quanto disso resultou em condenações, o número não é tão expressivo. Principalmente porque a Mãos Limpas começou em 1992 e, a partir de 1994, começou a haver uma reação política que levou à alteração de leis que reduziram prazo de prescrição, dificultaram o trabalho da Justiça, descriminalizaram algumas condutas. Por outro lado, embora a Lava Jato tenha gerado reações – me parece que os pilares da operação garantiram uma mudança de um padrão de impunidade da grande corrupção, ou seja, a responsabilização –, ainda permanece como uma construção em andamento, e não algo que foi desconstituído. A similaridade está nos números de ambas, são expressivos.
O sistema político vê o combate à corrupção como uma ameaça?
Não digo que é uma ameaça ao sistema político, o que ameaça o sistema político é a prática de corrupção sem responsabilização. Pelo contrário, essas investigações e punições, quando provada a culpa, ajudam a eliminar do sistema político pessoas que se envolveram em práticas reprováveis.
O sr. ainda vê tentativas de reação ao avanço da Lava Jato?
Acho que existe. Para toda ação existe uma reação. Estamos mudando um padrão. Imagino que ainda caminhamos para a frente nesse aspecto. Sempre há uma reação a qualquer mudança, ainda mais numa mudança dessa envergadura.
Pode dar exemplo?
Existe uma jurisprudência nova no Supremo Tribunal Federal. Existem, no entanto, perspectivas que talvez não sejam consolidadas. Temos, por outro lado, algumas dessas operações que despertam reação mista da sociedade. Alguns apontam excessos e isso pode ter consequência, mas, em geral, a Lava Jato prossegue. Foi uma mudança de padrão. Se ela se encerrasse no passado ou de imediato, ainda assim seria louvável pelos resultados que encontrou. Muita gente pergunta se não está se alongando demais. Mas o Ministério Público e a Justiça não têm opção de virar o rosto para o lado e não fazer o seu trabalho. Quando surgem provas e fatos, ainda estão continuando a fazer as acusações e apurações. Talvez pudesse mudar o nome, mas o trabalho teria que continuar sendo realizado.
Após a decisão que deu à Justiça Eleitoral a competência para julgar os crimes correlatos com o caixa 2, o Supremo está para julgar uma ação que determina a necessidade de autorização judicial para que o Ministério Público tenha acesso a dados da Receita. Na avaliação de procuradores, isso pode atrasar as investigações. Qual o papel do Supremo?
O Supremo tem um papel muito relevante, o marco foi o julgamento da Ação Penal 470, o caso do mensalão. O Supremo passa a admitir que a execução de uma condenação seria a partir da segunda instância. Depois o Supremo julgou a proibição de doações de empresas nas eleições. Depois houve aquela decisão de redução do foro privilegiado. O Supremo seguiu o ciclo virtuoso, mas houve alguns reveses, (como) essa decisão de entender que a Justiça Eleitoral é competente para crimes eleitorais com crimes conexos de corrupção e lavagem. Respeitosamente, uma decisão que não é boa. A Justiça Eleitoral não é o melhor lugar para tratar desses casos. Faz um trabalho fantástico nas eleições para resolver disputas eleitorais, mas não é uma Justiça habilitada estruturalmente para julgar esses casos mais complexos. Foi uma decisão ruim que não desmerece os precedentes anteriores. Vamos ver qual vai ser a posição do Supremo em relação se vai manter ou não o precedente da execução da prisão em segunda instância. Tenho mais que expectativa, tenho a esperança de que o precedente seja mantido.
Como vê a proposta da procuradora-geral Raquel Dodge de que juízes federais possam julgar crimes eleitorais?
O Supremo fez uma interpretação da lei e não da Constituição. Logo, se foi interpretação da lei, ela pode ser alterada. Entre os projetos que apresentamos um trata somente disso, de separar o julgamento do crime eleitoral do julgamento dos crimes comuns. Então, se aprovado esse projeto pelo Congresso, já se resolve o problema. O Supremo fez uma interpretação de que o sistema legal atual exigia a reunião desses processos. Então, muda-se a lei, não o resultado do julgamento, as consequências. Acho que é mais factível e prático do que a mudança da composição das cortes eleitorais. Porque sempre tem resistência. Se vão entrar os juízes federais, os juízes estaduais vão perder a competência e isso gera alguma controvérsia.
A Lava Jato pode atingir o Judiciário?
Nessa questão de eventuais apurações de más condutas judiciais, isso vai depender das investigações, do que foi encontrado e provado. Muito prematuro qualquer juízo a esse respeito. Eu, como ministro, não me encarrego mais diretamente disso, nem sei o que existe e o que não existe. Sei que tem muita especulação, mas o quanto isso é verdadeiro ou não…
A prisão do ex-presidente Michel Temer gerou uma repercussão negativa muito forte…
Não posso comentar decisões judiciais sobre caso concreto. Acho o juiz Marcelo Bretas muito corajoso. A investigação desse caso e a do Sérgio Cabral começou em Curitiba. Remetemos o caso, por decisão do Supremo, para o Rio, onde foi formada uma força-tarefa do Ministério Público e da polícia que encontrou também um juiz disposto a trabalhar. O resultado das investigações muito amplas, mais que a expectativa inicial, não estou falando desse caso específico, foi revelar todo um esquema de corrupção no Rio que era muito mais amplo, atingiu não só estatal como vários outros órgãos da administração. É um magistrado que merece elogios. Sobre o caso concreto da discussão cabível ou não da prisão preventiva (de Temer) houve recurso para um desembargador que entendeu reformar a decisão que vai ser apreciada pelo próprio tribunal. O sistema judicial faz sua parte. Essa questão de revisão de decisões às vezes concordamos, às vezes não concordamos, seja primeiro grau, seja último grau, mas não é o meu papel fazer comentário sobre a decisão.
A investigação começou com o senhor?
Foi o caso da Eletronuclear. Decretamos a prisão preventiva do presidente, almirante Othon (Pinheiro da Silva). Havia uma prova muito robusta de que ele teria desviado valores e, ainda no curso do processo, nos foram apresentados documentos falsos para justificar algumas transações, caso claro de risco à instrução. Foi condenado naquele processo. Agora está respondendo a processo derivado daquele. O caso de corrupção ficou cabalmente comprovado. Não importa o que você fez na sua vida pública, pode ter feito muitas coisas boas, meritórias, mas isso não te autoriza a roubar os cofres públicos. Então, o que você fez você perde.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, desqualificou o pacote anticrime.
Esse episódio foi superdimensionado. Nesse mundo político existem rusgas. (Você) Pega uma pessoa num mau dia e acaba fazendo alguma declaração mais áspera. Não estou dizendo dele, estou dizendo em geral, inclusive de mim. Essas tensões têm que ser contornadas pelo diálogo. Ainda tenho muita fé, acredito que o projeto (anticrime) vai ser aprovado no Congresso ainda neste ano. Claro que o tempo é que decide a pauta e o tempo são os presidentes das duas Casas, mas o que tenho visto dos parlamentares em geral é apoio à medida.
O sr. participou da campanha das 10 medidas contra a corrupção. Há má vontade com o projeto anticrime?
É um novo Congresso, um novo contexto. Tivemos eleições que mandaram um recado muito claro da importância do combate à improbidade e os parlamentares têm a percepção e a clareza de que é necessário fazer alguma coisa – seja por meio do meu projeto, seja de outro, seja deles mesmos – para tornar o sistema mais eficiente em relação à corrupção, crime organizado e crime violento. Exemplo. A crise da segurança no Ceará é uma situação preocupante, uma organização criminosa se sentir à vontade pra tentar intimidar o poder público e a sociedade porque entendia que seria submetida a um tratamento carcerário, não vou dizer mais rigoroso, mas que não permitisse aí toda aquela bagunça que muitas vezes existe em algumas prisões. Tentaram explodir viaduto, é muito preocupante. Temos que ter instrumentos. Entre as medidas que colocamos há um recado claro de que se você é membro de organização criminosa você não tem benefícios prisionais, não vai progredir de regime.
O pacote foi preterido para dar prioridade à reforma da Previdência?
Existe um consenso de que a Previdência é prioridade. Acho importante que governo e Congresso se unam para aprovar o projeto da Previdência. Se não nos unirmos agora temos que nos unir no futuro, em situação muito pior. Existe uma crise fiscal que tem que ser contornada pela Previdência e pela uniformização das regras de tratamento. Mas isso é assunto da pasta da Economia. Agora, a segurança pública também é um problema, o aprimoramento do sistema judicial é questão que tem de ser enfrentada. Vamos aguardar, esperar as decisões da própria Câmara.
O sr. cogitaria tentar a tramitação no Senado?
Houve algumas proposições de parlamentares, mas só seria feito com a concordância do presidente da Câmara. Aí não teria nenhum problema, porque não queremos atropelar o procedimento da Câmara.
O projeto do ministro do Supremo Alexandre de Moraes é concorrente?
Conversamos sobre os projetos. É um bom projeto, acho que eles se somam. Queremos aprimorar o sistema legal, não tem importância a autoria. O que eu disse sempre é que não se resolve o problema da corrupção sem mudar as regras e o governo Jair Bolsonaro pretende ser uma mudança nessa linha. Estamos implementando essa mudança. As pessoas querem ver os governantes reagindo de acordo com os problemas.
Reforçar as forças-tarefa é uma meta dos primeiros cem dias de governo?
Sim, sim, o processo ainda está em andamento, mas já houve aumento numérico, policiais envolvidos nessas áreas que já estavam no âmbito da Polícia Federal foram realocados. Se os recursos são limitados, o importante é focar. Compromisso assumido é compromisso cumprido.
O sr. vai aconselhar o presidente Jair Bolsonaro na sucessão da Procuradoria-Geral da República?
Sempre conversamos sobre os mais variados assuntos, não existe esse papel conselheiro. É natural que compartilhemos opiniões. Se ele pedir minha opinião, evidente vou dar, mas nem sabemos quem são os candidatos ainda.
Houve desgaste com o fundo bilionário previsto no acordo entre o Lava Jato no Paraná e a Petrobrás?
Esse dinheiro não poderia voltar para a Petrobrás, na perspectiva dos americanos. Então, os procuradores sugeriram à Petrobrás a criação dessa fundação muita controversa. Enfim, temos os recursos e precisamos descobrir como administrá-los e investi-los, cumprindo o acordo americano.
Fausto Macedo e Eduardo Kattah, Folha de São Paulo