Conheci Fernando Gabeira há 16 anos, quando eu estava no Ministério da Fazenda e ele, no Congresso. Encontramo-nos poucas vezes desde então.
Em tempos de desesperança, seu programa na GloboNews recupera a alma.
Há tanto que me comove: a descoberta dos recônditos do país, o carinho interessado pelos entrevistados, a câmera curiosa descobrindo detalhes inesperados, como uma placa de trânsito com uma palavra inclinada no canto.
Em um programa recente, visitou Exu, Pernambuco, e alguns de seus moradores. Com imagens espaçadas, como a da boiada passando pela cidade, descreveu um cotidiano. Não consigo imaginar homenagem mais delicada a Luiz Gonzaga, quase um contrabando do afeto.
Em vez de destacar o seu legado, Gabeira optou por mencionar de passagem seus gestos ao retornar ao vilarejo, como a doação de um acordeão a um parente ainda criança em quem anteviu a musicalidade.
Sutilmente, deixou-nos saber da música de Gonzagão que reverbera gerações, como na homenagem ao pai, Januário. As imagens retratavam a vida e a terra que ele cantara em seus baiões e xotes.
Aproveito para resgatar uma memória talvez curtida pela criatividade carioca.
Aproveito para resgatar uma memória talvez curtida pela criatividade carioca.
Quando era criança, minha mãe contava-me da ditadura em que vivíamos e dos jovens que resistiam atabalhoadamente, às vezes com violência inaceitável. Falava do sequestro do embaixador americano e, em meio ao desespero dos relatos da tortura e da opressão, ria-se do manifesto demandado a ser lido em horário nobre. Os jovens sem rosto eram identificados pela escrita, dizia ela, em que muitos reconheciam o estilo de Gabeira.
Pura lenda. O autor foi Franklin Martins, contou-me Gabeira.
Sua narrativa na televisão, porém, tem mesmo personalidade. Lembra-me a compaixão de Tchekhov, o dos contos em que revela pessoas por meio de sutilezas do seu cotidiano, não o das peças de teatro e das personagens que anseiam pela mudança e terminam resignadas com as circunstâncias.
A delicadeza do contar fala muito do país, mas também do jornalista, momentaneamente transformado em guerrilheiro naquele período autoritário. Sua generosidade permite encontrar vidas surpreendentes onde a elite apenas se enaltece com o exótico.
Gabeira revela-se um liberal dos velhos tempos que procura conhecer o diferente. Um alívio nesta sociedade dividida em que, costeando a intolerância, alguns tentam reescrever a história.
Há um Brasil que vale a pena. Enfrentar os nossos graves desafios, porém, requer superar o passado e resgatar o diálogo, como, incidentalmente, faz Gabeira com maestria e gentileza.
O colunista entra em férias por um mês.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia
Folha de São Paulo