Não tem saída. Para sair do quadro de recuperação lenta da economia, o governo precisa passar a reforma da Previdência no Congresso Nacional, dado que aposentadorias e pensões respondem por mais da metade do gasto público e que a crise fiscal é a “grande espada sobre nossos pescoços”, avalia o ex-presidente do Banco Central (BC) Arminio Fraga, em entrevista ao Estado.
O economista não vê espaço para o impacto fiscal das mudanças ficar abaixo do cerca de R$ 1 trilhão (em 10 anos) da proposta do Ministério da Economia, mas aposta num cenário mais realista, em que a reforma será aprovada “um tanto desidratada”, o que obrigará o governo a “caprichar muito” nas outras áreas.
Após a recessão, a economia está experimentando a recuperação mais lenta nos últimos 40 anos. Por quê?
De fato, tem sido uma recuperação lenta. Os dados de emprego e do PIB (Produto Interno Bruto, que cresceu 1,1% em 2018) divulgados recentemente confirmam isso. As origens (da lentidão) são múltiplas e têm a ver com um grau de incerteza geral ainda relevante. O governo é novo, de um grupo diferente, que nunca esteve no poder, com as naturais dificuldades de coordenação e organizações, próprias de grupos que chegam ao poder sem nunca ter tido experiência. A área onde estão as maiores oportunidades de investimento é a infraestrutura, mas, nesse setor, as coisas tendem a ocorrer de forma lenta. Existe um pipeline de oportunidades e, se o Brasil mantiver uma certa estabilidade política e social, com o tempo, o investimento vem, mas demora. Outro aspecto diz respeito às famílias. Tem muita gente muito endividada, o que inibe o consumo. E, finalmente, na indústria há muitos setores com capacidade ociosa, que inibe o investimento.
Nesse quadro, o Banco Central (BC) deveria baixar mais os juros?
O BC recuperou sua credibilidade, mas agora as expectativas de inflação estão próximas da meta, não há mais espaço relevante para cortes. Felizmente, o BC trabalha de maneira muito estruturada. Penso que essa política vai ter continuidade, mas não dá para esperar milagre só do BC.
Por que a reforma da Previdência é tão importante para enfrentar esse quadro?
A grande espada que está pairando sobre os nossos pescoços é a do lado fiscal. Temos uma situação fiscal bastante frágil, tanto no governo federal quanto na maioria dos Estados. O gasto com a Previdência é pouco mais da metade do gasto, logo a solução tem que passar por ela. O ajuste necessário é grande, porque houve um colapso fiscal enorme a partir de 2014. Isso tem que ser revertido, para criar mais confiança, consolidar a trajetória de juros baixos e reduzir a incerteza. A previdência gasta 14,5% do PIB, um número muito alto para um país ainda relativamente jovem. O ideal seria levar este número para 12% do PIB ou menos, o que vai exigir uma reforma da Previdência muito impactante.
A proposta apresentada pelo Ministério da Economia é impactante o suficiente?
Me parece boa, mas menos impactante do que seria necessário para gerar um choque positivo de confiança. Além disso, ela pode ser desidratada no Congresso. Se não for na Previdência, de onde virá o ajuste? De áreas muito delicadas do ponto de vista social? Há uma rejeição política a aumentar ainda mais a carga tributária, mas acredito que, na prática, ela ainda vai aumentar um pouco, pelo menos no curto prazo. Se há o desejo da sociedade de reduzir a carga tributária, vai ter que reduzir o gasto, mas onde? Da saúde, da educação, do saneamento? Estamos num quadro de cobertor curto generalizado e a Previdência é o item de maior peso.
Há um valor mínimo para o impacto fiscal da reforma?
Para mim, não dá para cair abaixo do R$ 1 trilhão que se propôs. Além de não ser tanto assim, o governo divulgou que o impacto nos primeiros quatro anos é limitado. Seriam os quatro anos da administração do atual presidente. Considero uma estratégia de risco. O governo teria que ser perfeito em tudo o mais para conquistar uma credibilidade imensa. E não apenas na área econômica, na área política também. Como vai funcionar a política? O Congresso segue pulverizado e polarizado. A estratégia de fazer a política pelas bancadas temáticas, deve gerar mais demandas, porque as demandas dos partidos vão continuar existindo. Esse sistema vem funcionando mal, pois produz buracos fiscais e tem dificuldade em olhar o longo prazo. Pensando friamente, acho que vamos ter uma reforma boa, mas, possivelmente, limitada. E aí o problema vai seguir. As pessoas mais otimistas acreditam que essa reforma, ainda que um pouco desidratada no final, pode significar o início de um ciclo virtuoso de outras reformas e por aí vai, mas, na minha leitura, as probabilidades jogam contra.
Se não houver reforma da Previdência, a economia pode voltar à recessão?
Sim, o que seria dramático, posto que, com 12% de desemprego, o quadro já é dramático. Torço para que ao fim e ao cabo o mundo político tenha uma reação racional e procure caminhos de correção. Talvez seja mais torcida do que análise. Vi com bons olhos que o governo, na reforma da Previdência, chamou atenção às questões distributivas. Isso era algo que estava faltando, não tinha sido mencionado pelo presidente em seus pronunciamentos. Claramente, essa questão não pode ser deixada de lado. Não é só uma questão de justiça, o que claramente não é pouco, mas também uma questão de estabilidade política, sem a qual as coisas não vão andar. É um tema que tem que ser priorizado e, pelo menos na reforma da Previdência, o governo tocou nesse assunto.
Pesquisa do instituto MDA mostrou que 45,6% da população desaprovam a reforma da Previdência. Como analisar esse resultado?
É preocupante, na medida em que sugere que os parlamentares, quando forem votar, terão pressão negativa das bases.
Se tivesse no governo, qual estratégia de comunicação adotaria?
A estratégia tem que ser de mostrar a realidade das finanças públicas do Brasil e tentar convencer as pessoas que de as promessas implícitas na Previdência atual não são factíveis. Isso é muito difícil, porque as pessoas pensam: “se tem tido muita roubalheira e vão acabar com ela, por que eu tenho que pagar o pato? Por que estão dando subsídios para o setor A, B ou C?” Fica sempre essa tendência de nivelar todo mundo num nível de sacrifício, entre aspas, baixos. Por que entre aspas? Porque, se não houver essa correção de rumo, o sacrifício vai ser muito maior. Qual a dificuldade desse cenário? O mesmo de sempre, dizer que é terrorismo econômico e tal. A minha esperança é que as pessoas entendam, mas essa pesquisa de opinião mostrando meio a meio a favor e contra sugere que a minha esperança pode morrer…
Na discussão inicial sobre a proposta de reforma do governo, já se falou em mexer no BPC e na aposentadoria rural. É possível fazer reforma que preserve os mais pobres ou todos têm que dar contribuição?
Claramente, a reforma tem que afetar menos os mais pobres. Essa foi a tentativa do desenho da reforma da qual eu participei e parece ser o caso agora, embora alguns aspectos venham sendo questionados. O caso do BPC e da idade mínima de aposentadoria está agora na berlinda. Acredito que o resultado final não vai ser piorar, entre aspas, para essas pessoas. Não se arrecada um ponto e meio do PIB por ano sem afetar muita gente. Se vier uma reforma parruda, embora, sinceramente, hoje não creio que vai ser o caso, teria muito mais confiança em prever um crescimento (econômico) maior, que, ao longo de poucos anos, impactaria muito mais a vida das pessoas. Imaginem reduzir o desemprego de 12% para 6%, a renda das pessoas crescer? Chamar isso de sacrifício é uma visão muito míope, mas as pessoas estão chateadas, estão se sentindo injustiçadas. Só que aí a conta não fecha. É um discurso complicado. A janela melhor já se perdeu, quando houve a falência do populismo da (ex-presidente) Dilma (Rousseff).
Teria sido mais fácil aprovar a reforma da Previdência logo após o impeachment?
Quando o País quebrou, com essa recessão, em que o PIB per capita caiu 10%, havia a chance para um discurso que poria o dedo na ferida, dizendo: “olha só no que deu esse populismo irresponsável, com consequências distributivas nefastas”. Essa era a hora, mas aí vieram novos escândalos, o governo do vice que assumiu (Michel Temer) ficou paralisado também, e, de repente, se perdeu essa noção de causalidade e de urgência.
O ministro Paulo Guedes sugeriu desvincular todo o Orçamento como alternativa à reforma da Previdência. Isso atacaria a crise fiscal?
Para funcionar, seria preciso mexer na própria Previdência, e também na estrutura salarial do governo. Um Congresso que não aprovar uma reforma como a proposta, não vai dar ao governo esse poder gigantesco, não faz sentido. É um cenário pouquíssimo provável. Se não passar nada no Congresso, aí vai ter pânico no mercado, paralisia econômica e aí aprova-se a reforma numa segunda tentativa. Acredito que a reforma será aprovada, um tanto desidratada, tudo indica, e aí o governo vai ter de caprichar muito no resto, muito mesmo. Vai ser um desafio enorme.
O resto são as reformas microeconômicas, a agenda de infraestrutura, a abertura da economia?
Sim, exato, sem esquecer os temas mais importantes: educação, saúde, saneamento, distribuição de renda. O Brasil precisa de uma boa reforma do Estado também.
A reforma administrativa do Estado teria impacto fiscal relevante também?
Teria um impacto duplo. Poderia ter um impacto fiscal, sim, ao longo do tempo, não da noite para o dia. Mas aumentaria bem a capacidade de o governo fazer muito mais com menos, prestar um serviço melhor para a população em todas as áreas, o que deveria fazer o País crescer e reduzir também a desigualdade. Não sou defensor do Estado mínimo, mas do Estado certo. Para isso, precisa de gestão, de avaliação, de projetos, de uma boa política de recursos humanos. Sei que isso faz parte do desenho já sinalizado por alguns do governo atual. Tomara que coisa avance.
Deve ser prioridade em relação à reforma tributária e abertura da economia?
Creio que sim, mas poderiam correr em paralelo. É possível se imaginar uma reforma do Estado enorme, corrigindo uma série de questões, mas é possível também se pensar em algo mais enxuto, para começar, na linha de se exigir avaliação de todos os funcionários públicos, de se fazer isso em termos relativos, para identificar os que merecem ser promovidos e, em última instância, desenvolver mecanismos de demissão daqueles que tiverem um histórico recorrente de mau desempenho. Essa reforma muito básica representaria um sinal de mudança radical no setor público. Trabalhei no BC, que é uma instituição extremamente eficiente. Tenho impressão que outras áreas do governo deveriam procurar atingir os padrões de eficiência do BC. É disso que se trata.
Algumas posições do atual governo, como a revogação da nomeação da cientista política Ilona Szabó do cargo de suplente no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), declarações sobre mudanças climáticas e sobre mudar a embaixada em Israel causam certo estranhamento na arena internacional. Vê chance de isso contaminar o interesse de investidores estrangeiros na economia nacional?
Vejo, sim. O caso da Ilona é sintomático, um absurdo total, infelizmente, não o único. O impacto cumulativo é maior do que se imagina. Isso mesmo em um mundo em que o autoritarismo e o desprezo por valores humanos vêm ganhando espaço. E me preocupam mais ainda as consequências internas dessas posições do governo.
O Estado de São Paulo