domingo, 28 de setembro de 2014

Escravidão ajudou a enriquecer a Suiça

Jamil Chade - O Estado de São Paulo

Bancos do país financiaram, segundo pesquisas, o tráfico de pelo menos 175 mil escravos africanos



Robert Harding / AFP

    Durante 300 anos, entre 9 e 14 milhões de africanos foram feitos escravos e cruzaram o Atlântico para servir a uma economia com base na exploração das Américas. Nas centenas de milhares de expedições que faziam a rota do tráfico negreiro, aqueles africanos não eram “nem livres para morrer”, como diria Castro Alves. Mas se por décadas essa atividade sustentou um sistema de produção, quem é que financiava o comércio de seres humanos? Quem é que lucrou e enriqueceu? 
    Documentos e pesquisas feitas nos últimos anos começam a mexer com um verdadeiro tabu. Longe dos portos de Lisboa, Luanda ou Salvador, eram banqueiros e empresários suíços que, de uma forma expressiva, financiavam o tráfico de escravos e se enriqueciam com ele. Hoje, parte dos prédios imponentes e palácios de cidades na Suíça compõem um cenário idílico. Mas a realidade é que foram erguidos com o lucro dessa atividade, na época legal.
    Mesmo sem acesso ao mar, sem colônias e com uma democracia exemplar, a Suíça fez parte da economia da escravidão durante séculos e, segundo especialistas, seus empresários e banqueiros acumularam fortunas com isso.
    O tráfico acontecia em um sistema de comércio triangular entre Europa, África e Américas. Dos portos europeus, saíam barcos carregados com produtos têxteis que, nas costas da África, eram trocados por seres humanos. Uma vez embarcados nos navios, os escravos eram levados para as Américas e revendidos. Até que esses barcos voltassem para a Europa com o dinheiro, a expedição podia durar dois anos.
    Para financiar essa viagem, e pagar pelo seguro da “mercadoria”, é que os suíços entraram como parceiros. Bancos e famílias como Burckhardt, Weiss, Favre ou Rivier financiaram dezenas de expedições, numa atividade bastante arriscada. As ameaças eram de revoltas nos navios, de tempestades que poderiam provocar a “perda total” da embarcação e mesmo surtos de doenças na travessia, matando metade dos escravos.
    Entre 1783 e 1790, os irmãos Weiss financiaram dez expedições em barcos que receberam nomes como La Ville de Bâle (A cidade da Basileia).
    As estimativas apontam que, entre 1773 e 1830, mais de cem expedições foram financiados pelos suíços, o que significou o transporte de milhares de africanos. Alguns historiadores, como Thomas David, Bouda Etemad e Janick Marina Schaufelbuehl, estimam que os suíços financiaram o tráfico de 175 mil escravos. Os barcos patrocinados pelos suíços saíam em sua grande maioria dos portos no sul da França, como Nantes. 
    Nos últimos anos, a organização não governamental Cooperaxion, com sede em Berna, começou a fazer um banco de dados com base em documentos para apontar o envolvimento de suíços e de instituições suíças no comércio de escravos. “O que descobrimos é que o envolvimento foi registrado em diversas cidades, de Neuchâtel a St. Gallen, da Basileia a Genebra”, declarou Izabel Barros, historiadora brasileira que comanda parte da pesquisa na Suíça.
    Segundo ela, os suíços estavam envolvidos em cinco atividades principais. “No financiamento das viagens intercontinentais, no comércio e produção de produtos manufaturados, eram também proprietários de terras nas colônias das Américas e do Caribe, havia igualmente militares que prestavam serviços à potências coloniais e de uma forma positiva alguns se engajavam como abolicionistas”, explicou a historiadora.
    Na cidade da Basileia, os documentos revelam que o empresário Christophe Bourcard bancou mais de 20 expedições, com um total de 7 mil escravos entre 1766 e 1815. Em Zurique, Jean Conrad Hottinger comandou expedições para deportar quase mil escravos.
    Bancos. As pesquisas da instituição revelam ainda o amplo uso do sistema financeiro de Genebra para bancar o esquema comercial. O banqueiro Isaac Thellusson, por exemplo, investiu em pelo menos três expedições negreiras, o mesmo feito pelo banco Banquet & Mallet.
    Christophe Jean Baur, sócio do banco Tourton & Baur, aplicou parte da sua fortuna em 1748 na Sociedade para o Comércio de Escravos de Angola. A rota principal era o fornecimento de “produtos” para a Ilha de Santo Domingo, hoje o Haiti e a República Dominicana. Já o conhecido banqueiro de Genebra, Antoine Bertrand, comprou ações na Companhia da Luisiana, responsável por entregar escravos às colônias francesas na América do Norte.
    Segundo o historiador e hoje deputado Hans Fässler, investidores de Genebra se aliaram ao banco de Zurique Leu & Co para financiar a Dinamarca na compra de ilhas que serviriam de entreposto para o tráfico de escravos em 1760. O Leu, nos anos 90, acabaria sendo comprado pelo Credit Suisse.
    Até hoje, uma rua no centro antigo de Genebra se chama Chemin Suriname, em referência aos investimentos que banqueiros locais possuíam na América do Sul. “Os bancos suíços construíram parte de seu patrimônio à custa do comércio de seres humanos”, declarou ao Estado o sociólogo Jean Ziegler, autor de um livro que causou um terremoto no país nos anos 90: A Suíça lava mais branco.
    Mas a participação dos empresários suíços não se limitava ao financiamento. Em 1685, Luís XIV expulsou os protestantes da França e, ao mesmo tempo, proibiu a importação de tecidos de algodão da Índia. O resultado foi a transferência de parte da indústria têxtil e de seus especialistas para regiões da Suíça, como as cidades de Neuchâtel ou Bienne.
    Nesses locais, os tecidos eram recebidos da Índia e tingidos. A produção era então embarcada para a África, onde seria usada como moeda de troca. Famílias como Petitpierre e Favre, de Neuchâtel, Simon & Roques da Basileia foram algumas que dominaram o comércio.
    Lucros. De volta às cidades suíças, o resultado desses investimentos até hoje faz parte do cenário de locais acima de qualquer suspeita e que transpiram uma aura de ética. É em Neuchâtel que as construções estão mais associadas aos investimentos relacionados à escravidão. Pela cidade, diversos palácios construídos por aqueles que se enriqueceram com o comércio hoje servem como prédios públicos.
    Tanto a biblioteca da cidade como o liceu foram construídos graças ao dinheiro deixado por David de Pury, um dos financiadores do tráfico de escravos. A câmara municipal também foi erguida com a fortuna que ele deixou para a cidade.
    Um dos principais museus da cidade ocupa um palacete deixado por James Ferdinand de Pury, investidor na produção de tabaco no Brasil em sociedade com Auguste-Frédéric de Meuron, oriundo de uma família de exportadores de produtos têxteis para a África e financiador do tráfico de escravos. Em Neuchâtel, a sede de seus negócios ficava no número 21, Rue des Moulins. Hoje, seu escritório deu lugar a uma loja de vestidos de noiva.
    O prédio da reitoria da Universidade de Neuchâtel era um palacete construído por Jacques-Louis Pourtalès, empresário que fez sua fortuna graças à troca de tecidos por escravos na África, além de manter propriedades em Granada, no Caribe. Seu filho entraria para a história da escravidão na ilha ao ser o primeiro a vacinar os seus 300 escravos contra a varíola. Afinal, no século XVIII, o preço de cada “cabeça” havia quadruplicado e manter vivos os escravos por mais tempo significava uma redução nos custos de produção.
    A estimativa dos historiadores é de que Jacques-Louis de Pourtalès tenha se transformado no suíço mais rico de seu tempo e numa das maiores fortunas da Europa, avaliada na época em 18 milhões de libras suíças. Naqueles anos, um professor ganhava no máximo 30 libras por ano. É dele também um dos hospitais até hoje em funcionamento na cidade.
    A quatro quadras da reitoria da universidade, outro palácio chama a atenção. Trata-se de uma obra de Alexandre DuPeyrou (1729-1794), um investidor na exploração do Suriname. Entre seus frequentes convidados, um certo Jean-Jacques Rousseau era presença constante no palácio.

    ESTÁTUA HOMENAGEIA O ‘BANQUEIRO DO REI DE PORTUGAL’

    Homenageado foi um dos principais atores do financiamento do tráfico de escravos entre 1761 e 1786

     No centro da pacata e perfeita cidade de Neuchâtel, uma estátua chama a atenção por sua placa, na qual os cidadãos locais agradecem aos benefícios deixados por David de Pury. O homenageado foi um dos principais atores do financiamento do tráfico de escravos entre 1761 e 1786. Integrou a South Sea Company, empresa com sede em Londres que, durante sua existência, transportou 65 mil escravos da África para as Américas.

      Depois, se transformou no maior acionista da empresa Pernambuco & Paraíba, que trouxe cerca de 42 mil escravos de Angola durante 25 anos. Seu envolvimento no império português lhe valeria, anos depois, o apelido de “o banqueiro do rei” de Portugal.
      Cooperaxion

      ENTIDADE TENTA CHAMAR ATENÇÃO PARA HISTÓRIA

      ONG faz visitas guiadas pelas cidades de Neuchâtel e Winterthur para mostrar como parte da riqueza foi acumulada com o tráfico de escravos

       Na estátua imponente erguida em seu nome no centro da cidade, uma placa apenas diz que David de Pury era um “rico comerciante”. Na prefeitura de Neuchâtel, na biblioteca ou na universidade local, bustos e outras placas apenas indicam como os empresários e banqueiros da região contribuíram para erguer os luxuosos prédios. Só não dizem que parte do dinheiro vinha da exploração do comércio de escravos africanos, mesmo que na época fosse uma atividade totalmente legal.

        Oficialmente, o governo suíço continua a apontar que não teve nenhuma participação oficial na escravidão, e ainda é um grande desafio colocar o assunto nas grades curriculares das escolas. Em 2003, pela primeira vez, a deputada Pia Hollenstein fez um pedido oficial ao governo do país para que esclarecesse sua participação no tráfico de escravos. “A Suíça nunca foi uma potência colonial e, portanto, é fundamentalmente diferente desses países no nível do comércio internacional”, indicou a resposta do Poder Executivo em Berna.
        “Isso não esconde o fato de que muitos cidadãos suíços estiveram mais ou menos envolvidos no comércio de escravos, algo que o Conselho Federal (Executivo) lamenta na perspectiva atual”, reconheceu.
        Sem responsabilidade. Mas a resposta do governo suíço ao pedido da deputada deixa claro que não se pode pedir, hoje, que o país seja responsabilizado. “A questão precisa ser tratada no nível internacional”, indicou. Desde então, o governo mantém a mesma posição em relação ao assunto. 
        Para tentar recolocar o tema na pauta e forçar escolas a tocar na questão, a organização não governamental Cooperaxion iniciou visitas guiadas pelas cidades de Neuchâtel e Winterthur, percorrendo as ruas e palacetes para mostrar como parte da riqueza desses locais foi acumulada graças à exploração do comércio de escravos.
        “Nosso engajamento é pelo dever de memória. A História nos ensina que a desigualdade social averiguada hoje entre os países antigamente envolvidos no comércio triangular não nasceu do nada”, declarou Izabel Barros, historiadora e uma das responsáveis pela entidade.
        “Foi tentando equilibrar essa relação que começamos a desenvolver projetos de desenvolvimento sustentável no Brasil e na Libéria. É nosso dever reconhecer e cooperar com as reais vítimas desse comércio – os descendentes das populações que foram, durante quatro séculos, escravizadas – não em forma de caridade, mas como uma possível reparação”, completou. 
        Guia do tour, a historiadora aponta que a reação de grande parte do público é “bastante positiva”. Mas admite que já teve pessoas em seu grupo que destacaram os benefícios que esses empresários e banqueiros haviam gerado para as cidades suíças.

        BERNA INVESTIU DINHEIRO PÚBLICO NO TRÁFICO NEGREIRO

        Estouro da bolha em 1720 quase levou o cantão suíço à falência; os dois principais bancos quebraram e por 30 anos nenhum outro foi aberto

        Não foram apenas banqueiros e empresários de Neuchâtel que apostaram no tráfico de pessoas para fazer fortunas. No dia 14 de abril de 1719, a República de Berna comprou 150 mil libras em ações numa das maiores empresas do mundo no tráfico de escravos, a South Sea Company, sediada em Londres. A iniciativa transformou Berna no maior acionista da companhia e o Estado gastou quase 10% de suas reservas nesse investimento. Mas a aposta quase levou o cantão à falência.

          Um estudo da London School of Economics (LSE) revelou que a estratégia de Berna chegou a chamar a atenção da monarquia britânica e, na época, foi considerada uma das maiores iniciativas financeiras por parte de um Estado. Berna, ao contrário de dezenas de governos pela Europa, vinha de dois séculos sem guerras, o que permitiu acumular um importante superávit. Mas precisava encontrar aplicações para o dinheiro que acumulava.
          A empresa South Sea havia sido criada em 1711 e tinha como objetivo ajudar o governo de Londres a reduzir suas dívidas graças ao comércio. Mas a realidade é que o fluxo de bens com a América do Sul, seu principal objetivo, era praticamente inexistente. O continente sul-americano era dominado pelos governos da Espanha e de Portugal, o que impedia a concretização do plano britânico.
          Mesmo assim, as ações da empresa ganharam uma dimensão inusitada, alimentadas por pura especulação, muitas vezes vinda de dentro da própria empresa, interessada em arrecadar mais dinheiro com a venda de seus papéis na Bolsa. O único comércio que de fato ocorria nas mãos da South Sea Company era o de escravos, que, a partir de 1715, dominou as atividades da empresa. Mas não justificava o salto no valor das ações, evidenciado, por exemplo, pelo alto investimento feito por Berna.
          O plano da companhia inglesa era levar da África para as Américas cerca de 34 mil escravos, em 96 expedições. Centros de comercialização foram montados pela South Sea Company no México, Panamá, Colômbia, Cuba, Jamaica e Havana. 
          Estouro. No rastro do sucesso da South Sea Company, muitas outras empresas resolveram emitir e vender ações. Em 1720, porém, a bolha de ganhos provocada pelo interesse na South Sea iria estourar, provocando profundos impactos para a economia britânica. Uma espécie de CPI chegou a ser montada pelo Parlamento Britânico, que confiscou os ativos de empresários do setor e ainda puniu políticos que teriam se beneficiado de forma ilegal da atividade dessas companhias.
          As contas de Berna sairiam ilesas em um primeiro momento – em junho de 1720, um dos bancos envolvidos na operação alertaria para os riscos do rápido aumento nos valores das ações, num sinal claro de que a alta não tinha como base um maior lucro da South Sea Company, mas sim por causa da especulação. Conservadores, os representantes de Berna decidiram no dia 22 de junho de 1720 vender todas suas ações na companhia, obtendo um lucro de 660% em comparação ao que haviam aplicado um ano antes.
          Nos dois meses seguintes, as ações da companhia realmente desabariam, provocando o que viria a ser considerado o primeiro estouro de uma bolha no sistema capitalista. Como reação, entrou em vigor na Inglaterra uma nova lei que proibia a formação de sociedades anônimas sem a aprovação expressa do Parlamento. Essa limitação durou até o ano de 1865.
          O impacto para Berna, no entanto, não havia terminado. O crash da Bolsa de Londres levou à falência os dois principais bancos do Estado – o Malacrida & Cie e o Samuel Muller & Cie. O caos financeiro causou uma crise política e obrigou a República de Berna a redesenhar sua Constituição.
          O lucro que Berna havia obtido ao vender suas ações da South Sea Company antes que a empresa quebrasse, de acordo com o estudo da London School of Economics, foi suprimido diante das perdas com seus agentes financeiros e, por 30 anos, nenhum novo banco foi aberto na cidade suíça.
          Para entender. Em 1711, em dificuldades financeiras por causa de exagerados gastos com guerras, o governo inglês pegou um empréstimo de 11 milhões de libras com a South Sea Company. Em troca, a empresa conseguiu juros de 6% ao ano e o monopólio do comércio nos mares do Sul. Para se financiar, a companhia resolveu vender ações, que se esgotaram rapidamente, graças a uma propaganda agressiva. Mas, em 1718, Inglaterra e Espanha entraram em guerra, destruindo qualquer possibilidade de sucesso na operação.