segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Al Pacino diz que não pensa em parar, lembra início difícil e promete viver Napoleão

Carlos Heli de Almeida - O Globo

'Morro antes de me aposentar', afirma ator, em passagem pelo no 71º Festival de Veneza

Al Pacino em Veneza Foto: TONY GENTILE / REUTERS
Al Pacino em Veneza - TONY GENTILE / REUTERS


Há algo no comprometimento de Al Pacino com a arte da interpretação que consegue apagar da memória do público deslizes antigos ou recentes, como a fantasia “Simone” (2002), de Andrew Niccol, ou a comédia “Cada um tem a gêmea que merece” (2011), de Dennis Dugan. Para a plateia ou para os críticos, o ator americano sempre será o Michael Corleone da trilogia “O poderoso chefão”, de Francis Ford Coppola, ou o Tony Montana de “Scarface”, de Brian De Palma, ou mesmo o artista que tem orgulho de suas raízes teatrais, a ponto de tentar levá-las para o cinema nos documentários “Ricardo III — Um ensaio” (1996) e “Salomé” (2013), os quais dirigiu e protagonizou. E foi assim, como uma estrela de sua geração, que Pacino foi recebido nesse fim de semana no 71º Festival de Veneza, onde veio acompanhar a estreia de dois de seus trabalhos mais recentes, “Manglehorn”, de David Gordon Green, em competição, e “The humbling”, de Barry Levinson, exibido fora de concurso.

Na Itália, mais do que em qualquer outro lugar do planeta, todos se referem ao astro de origem ítalo-americana, nascido e criado no bairro nova-iorquino do Bronx, como uma lenda viva. Até mesmo colegas de profissão — como o ator Chris Messina (da série de TV “The newsroom”), com quem Pacino contracena em “Manglehorn” — o chamam publicamente de “deus”.

— Aprecio quando se referem a mim dessa maneira, as palavras e os sentimentos que elas carregam, mas não as interpreto ao pé da letra e, misericordiosamente, tento esquecê-las. 
Aceito esse tipo de comentário, porque é uma expressão de entusiasmo pelo trabalho de alguém — reagiu o ator de 74 anos em entrevista ao GLOBO, por trás de óculos espelhados que escondiam uma incômoda alergia nos olhos, na manhã de ontem. — Mas levou algum tempo para eu chegar a esse nível de entendimento comigo mesmo. Quando mais jovem, não entendia esse tipo de comportamento e tentava evitar o assunto.

E é com a sabedoria da idade que ele tem se entregado a projetos arrojados e até autorreferentes, como “The humbling”, versão para o cinema do romance homônimo de Philip Roth sobre um veterano ator que, no auge de sua carreira na Broadway, resolve abandonar os palcos. A trama de “Manglehorn”, drama sobre um velho chaveiro do Texas obcecado por um amor malfadado, também tangencia temas próximos a Pacino, como o envelhecimento e a necessidade de fazer as pazes com o passado para poder seguir adiante. Não que o ator pense em aposentadoria, como o protagonista do filme de Levinson, ou se arrependa de decisões tomadas no passado.

— Vejo a vida como uma coisa cíclica e à qual reagimos de formas diferentes com o passar do tempo. O desejo de fazer esses filmes vem do conhecimento que tenho sobre os mundos ou os temas sobre os quais se debruçam, e sobre os quais sinto desejo de falar. E o desejo é importante, assim como o apetite pelo trabalho também o é — analisou Pacino. 

— Não me vejo no lugar desses personagens, mas eles estão em um momento muito particular da vida, que de certa forma é o mesmo em que me encontro. Só que não penso no fim da carreira ou em arrependimentos. Acho que morro antes de me aposentar.

No início da carreira, Pacino precisou recorrer a uma bolsa do Actors Studio, a escola de arte dramática fundada por Elia Kazan e Robert Lewis nos anos 1940, para concluir seus estudos. E usou muitos sapatos doados pela escola antes que ganhasse seus primeiros grandes papéis no cinema, como o personagem-título de “Sérpico”(1973), o policial que denuncia a corrupção de sua corporação no filme de Sidney Lumet. Foram tempos difíceis, em que a disputa por um papel poderia até interferir na amizade com outros companheiros de igual talento, como Robert De Niro, com quem Pacino trabalhou em “O poderoso chefão”. Hoje, ele vê com prazer seus amigos de geração desfrutando do mesmo prestígio de então.

— Bob (De Niro) é um amigo próximo, que adoro, e é difícil pensar naquele tempo em termos de competição. A gente precisa afastar o pensamento desse tipo de coisa o máximo possível. Mas, quando se é jovem, em qualquer profissão, a gente acaba afetado por isso. Hoje em dia, não mais, e por ninguém do ramo. Mas é claro que a gente teve que aprender a contornar esse problema, porque muitas vezes cheguei a disputar papéis com outros amigos — admitiu o ator, que ganhou reputação fazendo bandidos e policiais, e hoje festeja a capacidade de renovação profissional de seus contemporâneos. — Veja o caso do próprio Bob, por exemplo. Ele soube se reinventar completamente na comédia, como em “Máfia no divã” (1999).

Al Pacino deve grande parte da reputação de que goza hoje aos foras da lei e aos tiras que interpretou nas primeiras décadas da carreira. Tony Montana, o imigrante cubano que constrói um cartel de drogas na Flórida em “Scarface” (1983), de Brian De Palma, tem um lugar especial no panteão de seus filmes mais memoráveis. Considerado muito violento na época de sua estreia, o filme, que em 2006 chegou a ganhar uma versão em videogame, é referência para espectadores de diferentes gerações.

— Até hoje, encontro pessoas que se declaram fãs de “Scarface”, inclusive jovens que sequer eram nascidos quando ele foi lançado. Fico satisfeito, porque significa que o filme ainda tem muito a dizer. De Palma enfrentou muitas reações negativas na época do lançamento, por todas as questões que o filme teve coragem de levantar, como imigração, tráfico de drogas e corrupção policial. O tempo provou que ele estava certo — defende o ator, que ganhou seu primeiro Oscar com “Perfume de mulher” (1992).

A complexidade dos personagens que Pacino busca hoje em dia estão em outro lugar, como demonstram “The humbling” e “Manglehorn”. Em “Danny Collins”, com estreia prevista para 2015, por exemplo, ele interpreta um velho roqueiro que recebe uma carta atrasada escrita por John Lennon e Yoko Ono. O ator também está determinado a retomar a ideia de interpretar, em filme, o ex-imperador francês Napoleão Bonaparte antes de se envolver em qualquer novo projeto de teatro ou cinema.

— Já encontrei o texto ideal sobre Napoleão, escrito especialmente para mim. É sobre seus últimos dias de vida, na ilha de Santa Helena. Você consegue imaginar que tipo de reflexão pode gerar alguém como ele, diante do fim? — pergunta o ator.