GUILHERME EVELIN - Época
Um livro com cartas inéditas mostra por que ele, em sua trajetória, despertou amores e ódios com igual intensidade
O corvo é uma ave agourenta. No famoso poema do poeta americano Edgar Allan Poe (1809-1849), ele é o mensageiro da inevitabilidade da morte. O corvo era também o apelido dado pelos inimigos a um dos principais políticos brasileiros do século XX, o carioca Carlos Frederico Werneck de Lacerda (Carlos em homenagem ao alemão Karl Marx, Frederico em alusão a Friedrich Engels, os ideólogos do comunismo), cujo centenário de nascimento se celebra nesta quarta-feira, 30 de abril. Lacerda ganhou o epíteto pela agressividade, quase às bicadas, com que atacava seus adversários políticos. O estilo o colocou no centro das mais conturbadas passagens – o suicídio de Getúlio Vargas (1954), a renúncia de Jânio Quadros (1961) e o golpe que derrubou João Goulart (1964) – de um dos mais tumultuados períodos da história brasileira, entre as décadas de 1950 e 1960.
Não se esperam de um corvo carícias na direção de gatinhas. Essa é uma das descobertas do livro Carlos Lacerda/Cartas, lançado nesta semana pela editora Bem-Te-Vi (dirigida por Sebastião Lacerda, filho de Carlos), com uma antologia de correspondências, muitas delas inéditas, escritas por ele entre 1933 e 1976 a familiares, amigos, intelectuais e políticos. Famoso pela oratória eloquente e recheada de vitupérios na direção dos adversários, Lacerda era também um grande escritor de cartas de amor, dirigidas à mulher, Letícia Abruzinni, uma fluminense de ascendência italiana, com quem esteve casado por 40 anos. É Letícia, a quem Lacerda sempre chamava de “gatinha”, a destinatária de bonitas cartas românticas, de qualidade literária surpreendente para quem as lê influenciado pelo nível da retórica dos atuais políticos brasileiros. “Levo sementes de hortas para plantarmos, e também muitas de flores. Levo projetos de trabalho, de descanso – mas nada disso se compara com a saudade que eu levo”, escreve Lacerda a Letícia, em carta de novembro de 1942, quando, como homem apaixonado, acompanhava com ânsia os ponteiros do relógio, contando as horas antes de revê-la (leia mais abaixo).
As cartas dirigidas a Letícia ocupam apenas a menor parte do livro, as correspondências dirigidas à família. Como era relativamente comum no período em que viveu, Lacerda foi um missivista infatigável e escreveu, na forma de cartas, longos tratados. Seu principal tema era política, mas não só. Um dos poucos políticos brasileiros de quem se pode dizer que tinha verdadeiros interesses intelectuais, Lacerda se correspondeu com gente como os escritores Mário de Andrade, Otto Lara Resende, Érico Veríssimo e o sociólogo Gilberto Freyre. Ainda que relativamente curtas em comparação a outras, suas cartas românticas a Letícia dão uma pista para tentar entender as controvérsias provocadas por Lacerda e os amores e ódios despertados por ele. Ele foi um político movido por paixão, como escreveu o historiador José Honório Rodrigues, amigo de Lacerda, na introdução ao livro com seus discursos parlamentares, editado pela Nova Fronteira em 1982.
Essa paixão o movia a tentar construir e (como passou a maior parte da vida na oposição) a tentar destruir, com igual intensidade. Se você era um getulista ou um alvo dos seus impropérios, poderia dizer que Lacerda agia com virulência ou era um corvo. Se fosse antigetulista ou objeto de seus elogios, provavelmente seria capaz de se declarar admirado pelo seu desassombro. Quem testemunhou as duas facetas de Lacerda, ainda na sua fase de simpatizante do comunismo, na década de 1930, foi o escritor Mário de Andrade, autor de Macunaíma e um dos próceres do modernismo nas artes brasileiras.
Lacerda conheceu Mário quando dirigia em 1933 no Rio de Janeiro a revista Rumo, de caráter modernista, uma publicação da Casa do Estudante do Brasil. Os dois mantiveram uma correspondência que durou, pelo menos, até 1941. O período coincidiu com a fase em que Lacerda, líder estudantil com ideias comunistas, foi um entusiasmado militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN). A ALN era uma organização política fundada em 1935, e que respeitava as orientações do então Partido Comunista do Brasil (PCB). Por isso, combatia o fascismo, que tinha vários simpatizantes nas fileiras do governo Getúlio Vargas. Quatro meses antes da Intentona Comunista (tentativa de golpe militar dos comunistas contra Vargas que foi debelada e levou à desarticulação da ALN), Lacerda escreveu, em julho de 1935, uma exposição a um relutante Mário de que fizera bem em aceitar um cargo no Departamento de Cultura (hoje Secretaria Municipal de Cultura) de São Paulo.
“Nós estamos agora num caminho justo, um caminho de realizações concretas. A luta da Aliança Libertadora Nacional terá a colaboração da pequena burguesia. Faremos a revolução democrático-burguesa, agrária e anti-imperialista. Depois, num desdobramento, sem deixar morrer o facho da revolução em marcha, caminharemos até à revolução operária e camponesa”, escreveu Lacerda. Para ele, a hesitação de Mário em aceitar o cargo se devia à crença falsa, segundo Lacerda dizia na ocasião, de que os comunistas continuavam a ser “sectários ferozes, proprietários do nome de Carlos Marx, donos da Revolução”.
O rompimento de Lacerda com o Partidão ocorreu em 1939, num episódio controverso. Ele trabalhava como jornalista numa revista mensal, apoiada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), durante a ditadura do Estado Novo. Na ocasião, recebeu uma encomenda para escrever um artigo sobre a história do comunismo no Brasil. Antes de aceitar a tarefa, Lacerda, segundo relatos, consultou os companheiros comunistas, que deram seu aval. Publicado o artigo, com a afirmação de que o Estado Novo derrotara o comunismo, Lacerda foi acusado de traidor e expulso do PCB. Poucos anos depois, em 1941, veio o rompimento com Mário, com estrépito tipicamente lacerdista. Depois de ouvir que Mário fizera uma insinuação de que ele se “vendera” aos americanos, Lacerda escreveu uma carta a ele em que o desanca como “deconversador” do Estado Novo, por ter aceitado um emprego no Ministério da Educação de Vargas, e o chama (supremo insulto) de “acadêmico de chopp” (leia mais abaixo).
Depois de se converter ao catolicismo, em 1948, Lacerda abraçou, com a mesma sofreguidão, o anticomunismo. Numa carta a um amigo, de 1953, faz críticas severas a um conhecido comum que era simpatizante do Partidão. Lacerda mostra como passara a ver o comunismo. A seus olhos, ele se tornara ainda pior que o nazismo. “No comunismo, há a mistificação de ideais caros ao homem, e a matéria-prima que se usa para fins degradantes é a Justiça”, escreve. “A mentira é uma injunção a que o Partido obriga, desde que se mantenha a veracidade para com ele, Partido.” Na ocasião, a cruzada de Lacerda contra Vargas ganhara nova configuração. Após o fim do Estado Novo, em 1945, o getulismo se mantinha no poder graças a sua força nas urnas, enquanto a UDN, partido de Lacerda, acumulava derrotas eleitorais. No seu jornal, a Tribuna da Imprensa, Lacerda virara a metralhadora giratória que denunciava o “mar de lama” no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro.
O livro traz poucas cartas de Lacerda que abordam o suicídio de Vargas, em 1954. Ele ocorreu depois do atentado da Rua Tonelero, no Rio de Janeiro. Um pistoleiro, por encomenda de Gregório Fortunato, o chefe da guarda pessoal de Vargas, tentou matar Lacerda e acabou assassinando um oficial da Aeronáutica. A lacuna se repete no período anterior ao golpe contra Jango, em 1964, quando Lacerda era um dos conspiradores. A explicação dos organizadores da coletânea é que Lacerda não se dedicara a escrever cartas na época. Preferia se concentrar nas conversas de bastidores. Há várias amostras, porém, de que, após mais uma derrota da UDN para Juscelino Kubitschek em 1955, Lacerda deixou de considerar a Constituição um óbice para remover os adversários do poder. Durante o governo Juscelino, Lacerda considerava legítimos todos os meios para depor o simpático JK, brindado por ele, nas cartas, com as alcunhas de “apóstolo da inflação” e “profeta da corrupção”.
Após a desilusão da renúncia do aliado Jânio Quadros em 1961, Lacerda, no cargo de governador da Guanabara, foi vitorioso no golpe que derrubou Jango em 1964. Foi uma vitória de voo curto. Ela significou, mais tarde, o fim da trajetória política de Lacerda. A indisposição dele com o regime comandado pelos militares foi praticamente imediata. Ainda em 1964, em longas cartas ao general Castelo Branco, presidente eleito pelo Congresso para o lugar de Jango, Lacerda deblaterava contra a política econômica comandada pelo ministro do Planejamento, o diplomata Roberto Campos, a quem ele acusava de ser “subserviente” aos interesses estrangeiros e de conduzir a “revolução de 1964” para um “desastre nacional e internacional”. No poder, dois ícones da direita no Brasil, ambos acusados pela esquerda de ser pontas de lança dos interesses americanos, discordaram profundamente sobre quase tudo.
Enquanto brigava com Campos, Lacerda lutava para ser candidato em 1965 a presidente da República. Mas já pressentia que o sonho de sua vida nunca se realizaria. Quatro meses depois do golpe de 1964, com as manobras de prorrogação de mandatos pelo governo Castelo Branco, ele anteviu, numa carta a Bilac Pinto, presidente da UDN, o cancelamento das eleições e o “prólogo da próxima ditadura de uma sociedade anônima de políticos personalistas e militares”. Depois do cancelamento das eleições, Lacerda foi para a oposição. Em 1968, seus direitos políticos foram cassados pela ditadura. Foi o epílogo de sua trajetória pública. A partir dali, Lacerda passou a cuidar de uma editora de livros e a cultivar rosas, seu hobby. Na hora de seu cadafalso, o político que agia movido pelas paixões mostrou também que sabia, às vezes, ser cerebral e enxergar longe.