sábado, 18 de fevereiro de 2017

"Trump compartilha a visão de mundo da Rússia putinista", por Demétrio Magnoli

Mindaugas Kulbis/Associated Press
Na cidade de Vilnius, na Lituânia, grafite de rua zomba da relação entre Trump e Putin
Na cidade de Vilnius, na Lituânia, grafite de rua zomba da relação entre Trump e Putin


Folha de São Paulo

"Bromance", romance de irmãos, diagnosticou Obama na campanha eleitoral, referindo-se ao intercâmbio de elogios entre Trump e Putin. De fato, o magnata americano admira (ou inveja?) o autoritarismo do líder russo, que se libertou do escrutínio público atemorizando a imprensa e calando os críticos.

Nos seus ataques verbais ao "fracassado" "The New York Times", na emissão de um decreto ilegal anti-imigração e na nomeação de um capataz para "supervisionar" as agências de inteligência distingue-se a utopia reacionária de fazer os EUA mimetizarem a Rússia. Contudo, a crise da demissão do conselheiro de Segurança Nacional, Michael Flynn, sugere que a conexão russa tem raízes mais fundas.

Previsivelmente, diante de um fenômeno tão surpreendente, os analistas enveredam pelo caminho fácil das teorias conspiratórias. Trump temeria a revelação de segredos pessoais ou financeiros descobertos pelas agências de inteligência russas –eis a explicação dominante. Uma charge publicada pelo "Washington Post" coloca Putin no armário do presidente americano, sobre uma pasta de arquivos intitulada "declarações fiscais de Trump".

Anne Applebaum, colunista do mesmo jornal, aponta as relações financeiras, de amplitude desconhecida, entre o império imobiliário de Trump e o dinheiro arisco de origem russa. Isso tudo faz parte do campo de possibilidades –mas não explica a extensão dos laços entre o novo governo americano e o Kremlin.

A conexão russa repousa sobre uma base menos misteriosa, porém mais sólida. Para decifrá-la, é preciso escapar dos atalhos sedutores oferecidos pelo universo da espionagem e encarar de frente o desvio histórico inaugurado com a eleição de Trump.

No Salão Oval da Casa Branca, senta-se uma figura que compartilha a visão de mundo da Rússia putinista. Trump e Putin são "antiglobalistas", isto é, adversários explícitos da ordem mundial aberta erguida pelos EUA no pós-guerra e reforçada com a implosão do bloco soviético da Guerra Fria. O "bromance" pulsa no ritmo de uma velha canção nacionalista que invoca a miragem do retorno a um glorioso passado ideal.

"America first", o lema de Trump, é um plágio direto do estandarte do Comitê America First, a organização isolacionista criada em 1940 para evitar a entrada dos EUA na guerra mundial, que reuniu uma fauna de nacionalistas conservadores, simpatizantes do fascismo, socialistas e antissemitas como Charles Lindbergh.

O lema ressurgiu em 2000, empregado pelo candidato independente à presidência Pat Buchanan, que classificou a campanha contra o Eixo como uma "guerra desnecessária" e, como o Trump de hoje, atribuiu a "decadência americana" ao "vício" do livre comércio. (Ironicamente, à época, Trump definiu Buchanan como um "adorador de Hitler").

No fim, por razões distintas, tanto Trump quanto Putin enxergam a atual ordem mundial como uma armadilha que prende suas nações aos interesses de uma maléfica "elite globalista". Dessa convergência ideológica fundamental, âncora da conexão russa, emerge um programa estratégico comum que vai muito além da retirada das sanções à Rússia ou de um acomodamento geopolítico na guerra síria.

O Kremlin e a Casa Branca simpatizam com as correntes políticas ultranacionalistas que buscam destruir o edifício da União Europeia (UE). Nigel Farage, o líder do Ukip, que comandou a ala radical na campanha pela saída britânica da UE, é o ponto de referência de ambos no Reino Unido. Marine Le Pen, a candidata presidencial da Frente Nacional, ocupa o mesmo lugar na França.

"Só há um homem capaz de quebrar esse cadeado –e esse homem é Donald Trump", proclamou Farage dias atrás. Ele se referia, literalmente, ao congelamento das relações entre a Europa e a Rússia. Mas, no fundo, o "cadeado" é sua metáfora para a ordem global aberta estabelecida pelas democracias ocidentais.