segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

"Num barracão a 45 graus", por Ruy Castro

Folha de São Paulo


Em sua capa de fevereiro de 1962, criada por Glauco Rodrigues, a revista "Senhor" mostrava um arlequim estilizado –traços do chapéu, da máscara, da roupa de losangos– e a frase: "Ele vem aí". Mais nada, nem precisava. Era o Carnaval. 

Aquele número da "Senhor" trazia ficção por Isaac Bashevis Singer, humor por João Bethencourt, a poesia de João Cabral, grandes cartuns de Jaguar e altas prosopopeias de Paulo Francis sobre psicanálise. Nada disso mereceu chamada de capa. Ele vinha aí.

A imprensa carnavalesca do Rio tem 150 anos. Podem-se compor grandes antologias com seu material e, uma delas, de 1943, organizada por Wilson Louzada, era estrelada por Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, João do Rio, Dante Milano, José Lins do Rêgo, Marques Rebêlo, Lucio Cardoso, Rubem Braga, Jorge Amado, Jorge de Lima. Todos escreveram maravilhas sobre o Carnaval.

Mas esses eram os ilustres, que viam a festa de fora. Os verdadeiros cronistas do Carnaval eram os repórteres de 1900, que cobriam os clubes, ranchos e cordões, sentiam-se tão foliões quanto jornalistas e se assinavam Vagalume, Peru dos Pés Frios, A.Zul, K.K.Reco, K.Noa. Seus descendentes foram Lucio Rangel, Jota Efegê, Eneida de Moraes e tantos outros, que, cada qual à sua maneira, anotaram tudo que puderam.

O ideal é quando os eruditos vergam sua metodologia à suada realidade dos fatos. Foi o que fizeram Suetônio e Rachel Valença ao escrever "Serra, Serrinha, Serrano – O Império do Samba", publicado em 1981 e relançado agora (Record, 433 págs.), acrescido de 33 Carnavais. Aqui está tudo sobre o Império Serrano: seus homens, mulheres, cantos, ritmos, festas, lutas.

É uma aula, mas não só. É também uma história de amor, num barracão a 45 graus, entre uma historiadora –Rachel– e uma escola de samba.