terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

"História esquecida: os soldados da borracha", por Rubens Barbosa


O Estado de S.Paulo

Livro narra a saga dos ‘arigós’ e seu papel na 2.ª Guerra, do ponto de vista dos EUA


O envolvimento do Brasil na 2.ª Grande Guerra tem merecido estudos que retratam as hesitações do governo de Getúlio Vargas diante do conflito mundial. Sobretudo sobre sua inclinação pelas forcas de Hitler até bem pouco antes das agressões sofridas por embarcações brasileiras desferidas por submarinos alemães e depois da entrada dos Estados Unidos na guerra contra o Eixo, após o ataque japonês a Pearl Harbour.
Pouco se sabe, contudo, do plano de contingência do governo norte-americano para efetivamente ocupar e ter controle da Região Nordeste do Brasil, do Ceará até a Bahia, por sua localização estratégica para as ações militares no norte da África, caso o governo brasileiro, a exemplo do argentino, ficasse neutro ou se declarasse a favor da Alemanha. Ainda é pouco conhecida a importância da participação do Brasil na preparação norte-americana para a guerra, pela decisão de negociar o estabelecimento de uma base militar em Natal e pela venda da produção de borracha não consumida no País para o esforço bélico norte-americano.
Em livro recém-publicado por Gary e Rose Neeleman, Soldados da Borracha (Edipucrs), é narrada a saga de nordestinos que foram deslocados para o Acre a fim de colherem o látex necessário para a mobilidade das tropas aliadas. O relato apresenta os fatos sob a óptica dos EUA, pela análise de documentos obtidos dos arquivos do Departamento de Estado americano.
A passagem de Franklin Roosevelt pelo Nordeste para se encontrar com Getúlio Vargas, em janeiro de 1943, após encontro em Casablanca com Winston Churchill, está relacionada com as negociações para a utilização da base de Natal e com a montagem de um amplo programa de cooperação para a exportação de borracha para os Estados Unidos.
Em janeiro de 1942 realizara-se no Rio de Janeiro a conferência hemisférica que se mostrou um teste crítico para a política de apoio buscada por Washington. O Brasil – por intermédio de seu chanceler, Oswaldo Aranha, que presidiu o encontro – teve papel crucial, especialmente pela relutância de alguns países quanto à adesão aos Aliados, principalmente a Argentina. O objetivo do encontro era oferecer proteção dos Estados Unidos aos produtos e bens produzidos na região e que poderiam servir ao esforço de guerra.
Duas semanas depois da conferência, Brasil e Estados Unidos assinaram acordo de cooperação envolvendo a produção de borracha na Bacia do Amazonas e a maneira como seria feita a venda para os EUA. O Brasil, na época, era um grande produtor mundial da borracha – não existia produto sintético – e a Malásia e outros países que começavam a ter relevância no mercado global estavam na esfera de influência do Japão, também em guerra.
Os dois países criaram a Companhia de Reserva da Borracha, com escritórios no Rio e em Washington, responsável pela compra do excedente de borracha produzida no Brasil. Dezenas de milhares de nordestinos foram recrutados, em especial de Fortaleza, mas também de outros Estados, como Rio Grande do Norte e Paraíba, o que, do ponto de vista do governo Vargas, ajudava a combater os problemas derivados da forte seca por que passava a região. A viagem dos chamados “arigós” – que de Fortaleza ao Acre poderia durar até três meses – era feita na traseira de caminhões, em vagões de carga e na terceira classe de navios. Como se pode imaginar, as condições de vida desses migrantes nas áreas produtoras da borracha não podiam ser mais precárias. Os 50 mil seringueiros que foram para o Acre tinham pouca ou nenhuma imunidade a doenças tropicais, como malária, febre amarela, beri-béri e disenteria, que deixaram milhares de mortos. O gasto mensal dos seringueiros ficava entre US$ 400 e US$ 500 e seu rendimento chegava apenas a US$ 300. Os “arigós” eram obrigados a oferecer toda a borracha extraída aos donos das propriedades, que lhes vendiam todos os produtos de que necessitavam. Sem receber diretamente, os trabalhadores ficaram com dívidas com os fornecedores. O presidente Lula, em 2010 deu aos descendentes desses seringueiros uma pensão parcial. Frustrados, ainda em 2010 eles abriram processo contra o governo federal no intuito de obter mais indenizações pelo sacrifício de seus avós, pais e deles próprios.
Para financiar todo o empreendimento o governo Vargas criou o Banco de Crédito da Borracha, com sede em Belém, com a atribuição exclusiva de comprar e vender a borracha bruta para o consumo doméstico e a exportação para os EUA. Logo se pôs a questão da exportação para países sul-americanos, como o Chile, a Venezuela, a Argentina e o Peru, contra a decisão de Washington, preocupada com o eventual desvio da borracha para os alemães de Hitler e a redução do fornecimento contratado para a guerra. Segundo o acordo de março de 1942, o governo norte-americano se obrigava a pagar US$ 100 milhões pelo produtos e mais US$ 5 milhões para programas de saúde, em vista do crescente número de seringueiros afetados pela inclemência do clima na região. 
Conforme rezava o acordo, a borracha seria paga ao Banco do Brasil “somente no ponto do envio”, o que indica que o governo brasileiro recebeu efetivamente o pagamento da mercadoria estratégica, apesar de dúvidas quanto ao seu efetivo pagamento. De acordo com relatório do governo norte-americano, entre abril de 1942 e junho de 1947 os EUA pagaram ao Brasil US$ 40 milhões pela borracha da Amazônia. A diferença entre o acordado e o efetivamente pago pode ser resultado da produção menor que a esperada pelo governo de Washington, pelo preço inferior ao estimado ou por desvio e corrupção.
Aos historiadores, a tarefa de levantar a documentação do lado brasileiro e esclarecer esse e outros tantos pontos desse relevante e trágico episódio ocorrido no Brasil durante a 2.ª Guerra Mundial.