sábado, 4 de fevereiro de 2017

Ruy Castro: "A bordo com Callado —e Jeeves"

Folha de São Paulo


Patrícia Santos - 11.abr.1995/Folhapress
O escritor Antonio Callado na Academia Brasileira de Letras em 1995


Antonio Callado, que teria feito 100 anos na última quinta (26), era um absurdo de agradável como pessoa. Seu tom de voz, olhar atento e respeito pelo interlocutor faziam com que, em sua presença, o ser humano parecesse melhor. Eram qualidades que, não sei por quê, atribuíamos aos ingleses, e, em jovem, Callado morara em Londres, a trabalho. Teria trazido de lá essa postura? Nelson Rodrigues achava que não. Para ele, o inglês era uma ilusão, e Callado, sim, o "único inglês da vida real".

Callado foi generoso comigo durante o trabalho em meu livro sobre Nelson, "O Anjo Pornográfico", de 1992. Recebeu-me mais de uma vez em seu apartamento no Alto Leblon e me falou do Nelson com quem trabalhou em 1941, ambos adaptando quadrinhos e folhetins para o "Globo Juvenil", e do Nelson com quem conviveu nos ásperos anos 60 e 70, sem que as diferenças ideológicas os separassem.

Por vários motivos, eu só conhecera Callado tardiamente, num dos passeios de saveiro que uma turma de jornalistas e escritores do Rio fazia à Ilha Grande em fins dos anos 70. Numa dessas, no Réveillon de 1979, eu levara para bordo um livro de P.G. Wodehouse (1881-1975), da sua longa série sobre o dândi Bertie Wooster e seu fabuloso criado Jeeves, na Londres de 1910. Não há leitura menos "séria" —nem mais deliciosa. Lendo sentado no chão, junto à amurada, reparei que Callado, no outro lado do convés, me olhava.

Aquilo começou a me incomodar. Ali estava o homem que sobrevivera às bombas sobre Londres na 2ª Guerra, dirigira o "Correio da Manhã", cobrira o Vietnã, escrevera "Quarup" e vivia sendo preso pela ditadura. Devia estar me achando o maior alienado do mundo. Horas depois, não se conteve. 

Aproximou-se e disse:

"Ruy, falta muito para você terminar? Este é o único livro do Jeeves que ainda não li!".