sábado, 4 de fevereiro de 2017

A transfiguração do trabalho em capital








Atletas formam a categoria mais tributada do Brasil em 2015, com alíquota média efetiva de 20,7% sobre seus rendimentos tributáveis. A alíquota média geral foi de apenas 7% e, mesmo assim, a Receita Federal alega que quase 300 atletas sonegaram tributos, porque auferiram como empresas receitas que ela entende que deveriam constar na declaração da pessoa física. As multas ultrapassam R$ 420 milhões. Só de Neymar cobra-se R$ 200 milhões. Mas isso se restringe a atletas?
Há tempo que jogadores de futebol estruturam rendimentos através de contratos variados, sendo um deles necessariamente trabalhista, que serve de referência para registro em competições e multa rescisória, que, por lei, é diretamente proporcional ao salário, o que estimula o clube a fixar cifras elevadas nesta relação trabalhista. A própria Lei Pelé estabelece que o jogador pode receber até 40% dos vencimentos através de contrato civil para exploração de direitos de imagem, prevendo expressamente a possibilidade de cessão dos mesmos a terceiros, inclusive pessoas jurídicas das quais sejam sócios, por que não?

Com tanta gente estruturando seu trabalho através de empresas, é curioso que principalmente atletas estejam sendo autuados (e justamente a ocupação de maior alíquota efetiva). Considerando todos os contribuintes do país, é verificado que, em 2015, rendimentos isentos e não tributáveis somaram 31% de toda renda declarada. Foram R$ 736 bilhões em doações, heranças, ganhos de capital, juros da caderneta de poupança, lucros, dividendos e outras receitas de donos de empresa. Impressiona que existam 4,8 milhões de pessoas físicas que se dizem empresárias, 18,4% de todos os contribuintes. 

Para cada patrão, há somente 1,8 trabalhador. Somando autônomos e microempreendedores, o número sobe a 7,9 milhões de declarantes. Excluindo bancos e estatais, este contingente supera os empregados das empresas privadas no Brasil, ilustrando bem a extensão desse fenômeno de transfiguração do trabalho em capital.

O Brasil tem uma das maiores cargas tributárias sobre a folha salarial em todo o mundo. 

Em razão disso, cada vez mais trabalhadores deixam de ser empregados com carteira assinada. O que começou como mera terceirização de atividades de apoio, como segurança e limpeza, aí como no resto do mundo, se transformou em algo novo, aí sem qualquer vínculo empregatício — que alcança cada vez mais executivos, engenheiros, professores, jornalistas, artistas, atletas etc. Até mesmo quem está no início da carreira já entra nesse processo, inclusive como microempreendedor.

Enquanto o empregador escapa de encargos, o empregado, mesmo com Cofins, PIS, Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) e ISS, atenua sua carga tributária efetiva com alíquotas menores de IR. O grande prejuízo fica com a Previdência Social. 

Empregadores deixam de contribuir com 20% sobre o valor integral da folha e o empregado, geralmente, passa a recolher valor mínimo sobre pró-labore simbólico recebido da empresa dele.

Ao invés de atacar com polícia, o governo deveria repensar a política.

Pedro Trengrouse é advogado e professor da FGV, e José Roberto Afonso é economista e pesquisador do Ibre/FGV