segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

"As Farc do Brasil", por Carlos Andreazza

O Globo

Não se matou ali por mais espaço e por melhores condições humanitárias, mas por controle da penitenciária, estivesse cheia ou vazia



Os brasileiros estão perplexos porque descobriram apenas em 2017 a existência de um grupo criminoso como a Família do Norte. Pois saibam que não estiveram sozinhos na ignorância: o ministro da Justiça e o presidente da República também só tomaram conhecimento de que tal família existia, com tamanho poder, em 1º de janeiro.

O governo do Amazonas, não. Este já a conhecia. Até já aceitara negociar com ela. Foi em 2015, depois de a FDN haver liderado — entre 17 e 20 de julho — o que ficaria conhecido como Final de Semana Sangrento, em que cerca de 40 bandidos ligados ao paulista Primeiro Comando da Capital foram assassinados em Manaus.

Membro de um governo que nunca combateu a FDN, o então secretário estadual de Administração Penitenciária, Louismar Bonates, segundo a Polícia Federal, sentou-se à mesa — no mesmo Compaj da desgraça do primeiro dia do ano — com o líder do grupo, José Roberto Barbosa.

Costuma ser essa a ação dos políticos ante uma crise de segurança pública: negociar com traficante e terrorista.

O encontro ocorreu em 21 de julho, foi proposto pelo governo deste mesmo José Melo — e nele se acertou a suspensão da sangria. A que custo? Ainda de acordo com a PF, o chefe da FDN saiu satisfeito da conversa. Não seria transferido e teria garantido o fim da separação entre facções na penitenciária, de modo que o minoritário PCC não estaria mais protegido em pavilhões isolados, o que equivale a dizer que o poder público entregava a direção do presídio — e a vida dos inimigos — à FDN.

A chacina no Compaj, no entanto, serviu de atalho para que o oportunismo estatista logo atacasse a suposta gestão privada daquele centro de detenção; mas não há verdadeiro regime de concessão se o governo é capaz de interferir dessa forma — o que, por sua vez, explicará a suscetibilidade da empresa concessionária à corrupção. Isso não significa, entretanto, que não houvesse algum tipo de parceria público-privada ali. Havia, sim; entre Estado e grupo criminoso.

O massacre do dia 1º de janeiro teria acontecido bem antes, portanto, não fosse a Operação La Muralla, desencadeada pela PF em novembro de 2015, que desarticulou a FDN (e o combinado) ao investir contra a rota do Solimões, via estratégica para o tráfico internacional — controlada pelo grupo amazonense e desejada pelo PCC.

Àquela altura, porém, a demonstração de força da FDN já era expressão do iminente rompimento entre o PCC e o carioca Comando Vermelho, que por muito tempo mantiveram uma política de boa vizinhança. A ruptura se daria em 2016.

Contra o projeto de expansão do multinacional PCC — dependente do domínio do Solimões, por meio do qual ingressa no Brasil boa parte da droga vinda do Peru e da Bolívia —, costurava-se a união entre CV e FDN (sendo, pois, o CV parceiro histórico das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, não há surpresa em que a FDN tenha também conexões com os narcoterroristas colombianos).

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Quem se dedicar a meia hora de estudo sobre o comportamento desses grupos notará que há um padrão: sempre se vingam. Apesar disso, o ministro da Justiça esteve à vontade para declarar que não via risco imediato de outra carnificina. E então, cinco dias depois, a selvageria de Roraima.

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No Rio, a recente disputa entre PCC e CV é ao mesmo tempo mais uma manifestação da mentira chamada UPP e o melhor exemplo de como governantes desonestos empoderam o crime.

Assim, desfeita a aliança com o Comando Vermelho, temos que o Primeiro Comando da Capital se associou, em posição de liderança, aos Amigos dos Amigos, o ADA, arquirrival do CV e antigo controlador da Rocinha, o maior ponto de venda de drogas do estado, agora sob a gestão profissional do PCC — e toda essa movimentação numa favela dita pacificada pela máquina de fazer propaganda de Cabral e seus beltrames.

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Estarão atrasados, contudo, os que restringirem essa disputa territorial a um projeto de nacionalização, sobretudo do PCC. O cenário era esse há dez anos. Hoje, o plano do PCC é de internacionalização, já está implantado, principalmente a partir do Paraguai, e se desenvolve naquelas que são as fronteiras mais desguarnecidas do mundo: as brasileiras.

Ninguém foi decapitado, em 1º de janeiro, porque o presídio estava superlotado. Não se matou ali por mais espaço e por melhores condições humanitárias, mas por controle da penitenciária — estivesse cheia ou vazia. Porque o controle da penitenciária representa o leme do Solimões. Business, leitor.

Antes, portanto, de se decretar o fracasso do combate ao narcotráfico, seria bom iniciá-lo de verdade. Estão avançadas as bases para que tenhamos no terrorista PCC as Farc do Brasil.