Participei do programa de privatização de Fernando Henrique Cardoso nos anos 90. Aprendi algumas coisas que ainda hoje, 25 anos passados, continuam relevantes. A primeira delas é que a venda das estatais envolve todo o governo, desde o compromisso do próprio presidente ao terceiro escalão. A segunda é que numa privatização, a venda pelo melhor preço não é o objetivo único e, por isso, demanda uma série de outras iniciativas, como o desenho de um modelo que gere competição e eficiência, a criação de agências reguladoras autônomas e independentes e a garantia da transparência e segurança jurídica do processo.
Foi com esses objetivos e orientações que FHC implementou um agressivo programa de desestatização, como parte de um conjunto de políticas macroeconômicas que acompanhou o Plano Real. A engenhosidade do mecanismo de troca de moedas foi tão grande que pouco se fala da bem desenhada agenda liberal que deu sustentação ao plano de estabilização. Com abertura comercial, reorganização das contas públicas federais e estaduais, fortalecimento do Tesouro Nacional e reforma do Estado, com ênfase nas privatizações, foi definido um novo modelo econômico para o País.
Depois da retirada do Estado em setores importantes da economia, como petroquímica e siderurgia, o governo FHC avançou abolindo os monopólios estatais e vendendo empresas de energia, a Vale e a Telebrás. Com a limitação imposta pelo governo federal à capacidade de endividamentos dos Estados, os governadores decidiram vender seus ativos e aderiram ao programa, tornando a desestatização um movimento nacional e não apenas federal. Foram privatizadas empresas de distribuição de energia, saneamento e bancos públicos, como Banerj e Banespa, cuja venda com outros bancos estaduais ajudou a reestruturação do sistema financeiro, fragilizado com o fim dos ganhos decorrentes da inflação. O paralelo com momento atual é gritante: a venda dos ativos deve estar no topo da agenda de todos entes federativos, em complemento às reformas da Previdência e do funcionalismo.
Os anos PT revelaram o perigo de se deixar empresas estatais nas mãos do Estado. Imaginemos o que teria acontecido com 27 empresas de telefonia, que pertenciam ao sistema Telebrás, nas mãos do mesmo governo.
Privatizar demanda coragem. Não há espaço para acomodação política. O Sistema Telebrás foi vendido em 1998, mesmo ano em que a emenda constitucional que estabelecia idade mínima na aposentadoria foi levada à votação, e só não foi aprovada por um voto.
Com alegria vi a desestatização voltar ao centro do debate econômico nas eleições passadas. Mas confesso que estou bem decepcionada com a privatização anunciada por este governo.
O que se vê é muito mais um programa de desinvestimentos. Optou-se por reduzir o número de estatais através da venda de subsidiárias e não pela privatização das empresas controladoras. Não é uma boa ideia. Primeiro, porque deixa a decisão do que vender, e como, nas mãos das próprias holdings. Segundo, porque os recursos arrecadados vão para o caixa dessas empresas, o que não é necessariamente convergente com os interesses do Tesouro e dos pagadores de impostos. Terceiro, porque não erradica o mal pela raiz. Qual a garantia de que a Caixa ficará livre dos desatinos de um governo populista só porque abriu capital?
Veja o caso da Telebrás. FHC vendeu todas as subsidiárias e só sobrou a holding não operacional. Mas o apêndice desnecessário tomou vida própria e ainda hoje absorve bilhões do Tesouro. Espero que seja vendida em breve com muitas outras.
Os números anunciados na campanha (R$ 1 trilhão em venda de ativos) eram fantasiosos. Em boa hora a equipe econômica entendeu que para obter impacto definitivo nas contas públicas a privatização não seria suficiente. A reforma da Previdência virou prioritária, com a previsão de uma economia do mesmo trilhão em dez anos.
Por outro lado, a arrecadação esperada com a venda de ativos de US$ 20 bilhões para este ano é tímida. Promessas foram esquecidas: da televisão do Lula à empresa do trem-bala. O abandono de um projeto mais audacioso nem sequer foi explicado. Pelo jeito, a social-democracia à brasileira é mais liberal que o discurso de nossos novos libertários.
Em tempo: a URV (Unidade de Real de Valor), mecanismo de indexação que levou à expulsão da moeda velha pelo real, completou ontem 25 anos. Enquanto eu vivi seis mudanças de padrão monetário, um jovem brasileiro nem sabe o que é inflação. Feliz aniversário.
O Estado de S.Paulo