quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Por que a milionária americana virou financiadora de seita

Clare Bronfman pagou uma fiança de cem milhões de dólares, colocou uma tornozeleira eletrônica e foi para casa, em regime de prisão domiciliar, pensar no que a aguarda.
No que depender das promotoras de Nova York que sapateiam em cima dos saltos pensando no troféu – colocar na cadeia uma milionária do grau de uma herdeira do grupo Seagrams –, não é muito brilhante.
Outras três mulheres, todas do comando da seita/organização de autoajuda, também foram presas com Clare.
O chefe, Keith Raniere, o clássico guru de inteligência brilhante usada para manipular a níveis absurdos seus seguidores e, principalmente seguidoras, está preso desde abril.
Allison Mack, atriz da série Smalville criadora da “seita dentro da seita”, uma espécie de clube de mulheres que se deixavam marcar com ferro em brasa como sinal de “empoderamento” – nada de bom poderia vir dessa palavra –, também está em regime de prisão domiciliar, sob custódia dos pais.
A fiança dela, de cinco milhões de dólares, foi bem menor do que a de Clare Bronfman porque os juízes americanos levam em conta o patrimônio do réu para fixar a quantia.
Ambas são acusadas de tráfico sexual, um crime com penas a partir de 15 anos de prisão. Na maioria das vezes, as vítimas desses criminosos são adolescentes ou mulheres jovens trazidas como imigrantes clandestinas ou em situação de alta vulnerabilidade, como garotas que fogem de casa e caem nas drogas e na conversa da vida fácil.
O termo “escrava sexual” certamente chama a atenção de qualquer pessoa, mas dificilmente seria adequado para descrever as mulheres ricas ou de classe média que se encantavam por uma espécie de “pirâmide” instaurada por Allison Mack no interior da Nexivm, nome pomposo da seita – pronuncia-se Nexium.
Elas entravam numa espécie de irmandade de mulheres, consideravam-se “poderosas”, tinham um grito de guerra e se desdobravam para seduzir o guru espertalhão.
Também contavam calorias juntas porque Raniere gostava de mulheres extremamente magras e faziam “penitências” como tomar banho gelado ou doses extras de exercícios.
Cada uma tinha que trazer novas adeptas para ascender na hierarquia. O “ritual de iniciação” era a marca com ferro entre a virilha e o osso do quadril.
As mulheres deitavam-se numa maca e as mais experientes as seguravam pelos punhos e tornozelos enquanto eram marcadas, como gado.
O processo de ter a pele queimada pouco a pouco, horrivelmente doloroso, durava no mínimo meia hora. Olhando de perto, o símbolo esotérico marcado a ferro era bem simples: KM, as iniciais do guru. Exatamente como com o gado que leva a marca do dono.

Guru com mestrado

Se fosse crime ser idiota, acreditar em falsas amigas, encantar-se por sedutores cheios de lábia e fazer sexo para conquistar um lugar superior em qualquer esquema de poder, sobrariam poucos lugares no mundo sem cercas e grades.
Seitas e religiões estabelecidas operam em ondas similares, parecida também com ideologias políticas extremas: explicação unificada de todas as coisas, promessa de uma vida inteiramente nova, satisfação interior decorrente de largar tudo e fazer parte de um grupo de “escolhidos” e ter uma recompensa inestimável.
“Também todos aqueles que tiverem deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos e terras, por causa do meu Nome, receberão cem vezes mais e herdarão a vida eterna.”
Mas Jesus não pedia que as “terras” fossem passadas em seu nome nem que lhe propiciassem vida boa – sabia o que Lhe estava reservado.
Espertalhões como Keith Raniere, que teve a cara de pau de dizer ao New York Times que sequer pagava imposto de renda, por não atingir a faixa mínima de rendimentos – embora faça parte da investigação um pacote de 66 milhões de dólares em investimentos especulativos em mercadorias –, são especialistas em deixar os convertidos agradecidos por lhes dar tudo e mais um pouco.
Guru americano é, evidentemente, diferente dos indianos que flutuam, transcendem e se cercam de mulheres e Rolls Royce, como Rajneesh, que operava exatamente na mesma faixa de profissionais de classe média ou milionários em busca de uma causa.
Raniere formou-se em biologia, física e matemática, mas gostou mesmo foi de marketing. Ganhou dinheiro com uma rede de fornecimento de alimentos no mesma esquema de “pirâmide” – os que entram, vão trazendo outros.
Aprimorou técnicas de convencimento usadas no mundo das vendas, misturando-as com conceitos da neurociência e das inúmeras terapias “confessionais” que circulam entre os suficientemente endinheirados para buscar o sentido das coisas em cursos caros de autoconhecimento.
Dividindo-se entre México e Estados Unidos, conseguiu adeptos importantes, como o filho do ex-presidente mexicano Carlos Salinas e a herdeira de um dos maiores grupos editoriais do país.

Seguidoras milionárias

Mas nada se compara às irmãs Bronfman, Sara e Clare. Filhas do terceiro casamento de Edgar Brofnman Senior, elas transferiram para o guru uma quantia que pode chegar a 150 milhões de dólares.
O pai delas era uma personalidade massacrante, como é comum entre os muito ricos. Transformou a Seagram, o negócio de bebidas do pai, filho de imigrantes judeus no Canadá, nascido das vantagens criadas pelo período da Lei Seca nos Estados Unidos, num gigante mundial, com a famosa sede projetada por Mies van der Hohe na Park Avenue. Nos anos 50, um terço das bebidas alcoólicas consumidas nos Estados Unidos era da Seagram.
Entrou em muitos ramos do mundo do dinheiro em proporções avassaladoras, inclusive como o maior acionista minoritário da Du Pont, a gigante dos produtos químicos, e na legendária petrolífera Conoco.
Quando se aposentou e foi se dedicar ao Congresso Mundial Judaico, passou por cima do filho mais velho, que havia forjado o próprio sequestro, e deixou os negócios para o filho Junior, que imediatamente tratou de vender tudo e perder quantidades astronômicas de dinheiro.
Não o suficiente para deixar de comprar a Warner Music ou abalar a herança da família. Pelo tamanho da fiança, é possível calcular que Clare Bronfman tem pelo menos 200 milhões de dólares fora dos fundos que administram a vida dos grandes herdeiros que apenas desfrutam do bônus.
A mãe dela viajou da Inglaterra para garantir a fiança. Antes de se casar com Bronfman, chamava-se Rita Webb e trabalhava no pub dos pais, no interior da Inglaterra . O marido milionário a convenceu a mudar o nome para Georgiana, supostamente mais classudo.
Ela manteve o nome depois do divórcio. Há vários anos é casada com o ator Nigel Havers, um especialista em interpretar ingleses de classe alta exatamente como ele.
As filhas são loiras e altas como a mãe e não devem ter precisado cortar muitas calorias quando se transformaram no mais precioso bem de qualquer chefe de seita: seguidoras milionárias.
O caso mais momentoso dos Estados Unidos envolveu Patty Hearst, neta de ninguém menos que o Cidadão Kane, William Randolph Hearst, o milionário excêntrico do filme de Orson Welles.
Sequestrada em 1974, Patty aderiu aos seus torturadores, pertencentes a um obscuro grupo chamado Exército Simbiontês de Libertação. Participou de assaltos em que foi fotografada de boina e carabina automática na mão. Foi presa e condenada a sete anos de cadeia, não obstante as circunstâncias que seriam atenuantes. A pena foi comutada por Jimmy Carter.
Na seita de Raniere, as mulheres que entravam para o grupo empoderado tinham que dar uma “prova”: uma foto nua ou qualquer tipo de informação que pudesse causar constrangimento se fosse revelada publicamente.
Clare Bronfman chegou a enviar uma foto com um vírus por computador ao pai. Como ele não abriu, ela foi ao escritório dele e mostrou a foto. Os emails dele passaram a ser monitorados, para controlar possíveis ações contra o guru que havia seduzido suas filhas.
O que explica isso? Provavelmente tudo o que é humano. Carência emocional, desejo de realizar grandes feitos para conquistar uma admiração fugidia, convicção sincera de estar criando um mundo melhor e mesmo as delícias dos jogos sexuais envolvendo passividade.
Além, no caso de Clare Bronfman, da possibilidade de sempre dar uma escapada para a ilha que comprou em Fiji. Já que o dinheiro não compra felicidade…

Vilma Gryzinski, Veja