Nasci em São Joaquim do Monte, Pernambuco, filho de pai vaqueiro e agricultor e de dona de casa. Meu pai tinha uma rocinha e minha mãe criava uma galinha, um porco, uma cabra. Depois, com dez irmãos, imigramos para Caruaru. Em 1958, meu irmão Lourival veio para Brasília. Ele fazia suas refeições no Nosso Bar, que pertencia a um casal de franceses, madame Lucette e monsieur Noel, e servia uma comida trivial — frango assado, arroz, batata frita, bife de alcatra — para os pioneiros solteiros que vieram trabalhar na construção da capital.
Madame Lucette chamava meu irmão de “Lorrivalha”. Naquela época, passava no rádio uma propaganda do Sonrisal. Ela se virou então para meu irmão e disse: “Para mim, é mais fácil Sonrisalle”. E passou a chamar meu irmão de Sonrisalle. Um dia, ela disse: “Sonrisalle, preciso de um rapaz para trabalhar aqui”. Lourival respondeu: “Tenho um irmão em Pernambuco. Ele tem 16 anos e quer vir. Eu trago, mas desde que ele fique trabalhando e morando com vocês”. Ela mandou me buscar.
Depois de receber uma carta de meu irmão, embarquei para uma viagem de ônibus de quatro dias e meio de Caruaru a Brasília. Comecei no Nosso Bar no dia 27 de março de 1961. Chucro de tudo, não sabia nada. A francesa me olhou e se espantou com minha magreza. “Acho que ele não vai dar conta não”, pensou ela. Mas comecei a trabalhar, sem entender muito bem o que ela falava. Limpava o salão, os vidros e depois lavava copos, pratos. Quebrei alguns copos pelo nervosismo, mas sempre com muito interesse de aprender. Pegava de manhã e ia até meia-noite. Trabalhava sério, com honestidade. O casal francês foi gostando de mim.
Em 1966, madame Lucete disse: “Poxa, estão chegando as embaixadas. Vou fechar o bar e abrir um restaurante”. Abriu o La Chaumière — A Choupana, em português. Mudou o cardápio. Saiu o frango assado, entrou o steak au poivre. Nessa época, eu já trabalhava na cozinha com ela e pensava: “Vou aprender com essa francesa alguma coisa! Quando eu sair deste trabalho não quero ser empregado de ninguém”.
Em 1970, madame Lucette e monsieur Noel me chamaram e me ofereceram passagem, estadia, com tudo pago, para ir com eles à França. Em quatro meses, andei por Paris, Bordeaux, Tours, Lyon, Nice. Aprendi a falar francês, fiz cursos. Aquilo me engrandeceu muito. Antes da França, eu tinha vergonha de dizer que era ajudante de cozinha, porque, no interior de Pernambuco, homem que ia para cozinha era considerado “frango”.
Em 1972, madame Lucette me disse que estava cansada e ia vender o restaurante para mim. Respondi: “Não tenho dinheiro, não dou conta de comprar o restaurante. Além disso, como vou chefiar um restaurante francês frequentado por diplomatas e políticos? De Caruaru, com esse nome de Severino? Severino não combina com Chaumière, madame, não vai dar certo!”. Ela respondeu: “Non, non! Se você comprar o Chaumière, você não será mais Severino de Caruaru, você será o chef Severrã de Carruárru!”. O casal disse que não venderia o restaurante para estranhos e cortou um terço do preço. Comprei e paguei em parcelas.
Quando passei o Chaumière, em 1973, para meu nome, madame Lucette me disse para eu não crescer o restaurante nem o cardápio, que era para manter um padrão de qualidade. O nome “Severrã” pegou. Nesse tempo todo, lancei só mais três pratos novos, entre eles o “Sevê-Rã”, um filé ao molho roquefort, que empata, em número de pedidos, com o steak au poivre, o clássico da casa.
Nestes mais de 50 anos, a República inteira passou por aqui para comer nas mesinhas do La Chaumière. De Fernando Collor a Dilma Rousseff. Fernando Henrique gostava de sentar numa mesa no fundo. Quando ele foi chanceler, ele sentava aqui e conversava comigo na maior simplicidade. Um intelectual daquele nível! Ele lá em cima e eu aqui embaixo. Ele descia a conversa e ficávamos do mesmo tamanho. Quando se elegeu presidente, ao falar de seu prato preferido, disse que era o steak au poivre do Chaumière, onde o chef “Severrã” fazia seu prato pessoalmente.
Tenho uma afeição muito grande também por Marco Maciel, que foi vice de Fernando Henrique. Quando era governador de Pernambuco, ele veio ao restaurante e pediu seu filé ao molho de mostarda. Eu lhe disse: “Governador, eu gostaria de lhe fazer um pedido lá para minha terra, São Joaquim do Monte, onde o povo trabalha na agricultura: asfalta 11 quilômetros lá para facilitar”. O serviço foi feito, e virei herói lá. Disse a meu irmão Lucas para se candidatar a vereador. E ele se elegeu.
Ulysses Guimarães também era uma figura! Não aceitava que ninguém pagasse sua conta. Ele pagava com um cheque do Banco do Brasil. Ele vinha ao Chaumière com o Tancredo Neves. Quando Tancredo adoeceu e foi para São Paulo, sentaram numa mesa Ulysses e Sarney. Enquanto a gente os servia, ouvi o doutor Ulysses falar: “Sarney, se Tancredo vier a falecer, quem continua na Presidência é você. O vice-presidente é você e a Constituição lhe garante isso. Tem muita gente que não quer que seja você, quer que seja eu, mas não: não queremos mais golpe neste país!”. Na hora de pagar a conta, como ele não aceitava que ninguém pagasse e o Sarney também não se manifestou, ele pagou com um cheque do Banco do Brasil. Mas botou o ano de 1984 e já estávamos em 1985. Percebi a falha e segurei o cheque. Não depositei. Guardei.
Quando Sarney assumiu como presidente e fez uma viagem aos Estados Unidos, doutor Ulysses assumiu como interino e veio aqui comer seu filé como presidente. Sentou-se com Severo Gomes, Hélio Garcia, Israel Pinheiro Filho e o Fernando Henrique. Os quatro deram uma saidinha da mesa e doutor Ulysses ficou só. E eu com o cheque dele no bolso! Cheguei perto e falei: “Presidente, com licença, estou com um cheque em que o senhor se enganou de ano”. Ele disse: “Me dê que troco aqui”. Respondi: “Não, presidente! Não quero que o senhor troque não! Foi uma data tão histórica que eu gostaria que o senhor escrevesse uma dedicatória para eu guardar!”. Ele escreveu atrás do cheque: “Pela admiração que tenho ao amigo Severino e a sua cozinha, meu abraço, Ulysses Guimarães”. Esse cheque se perdeu numa mudança. Mas ficou em minha lembrança.
Lula também veio ao Chaumière em uma das campanhas presidenciais. Naquela época, havia área de fumante e não fumante nos restaurantes. Eu não tinha área de não fumante no restaurante, porque o ambiente é apertadinho. Mas não havia proibição de fumar. Ele se sentou numa mesa e acendeu um charuto. Não falei nada, mas isso talvez tenha incomodado os outros clientes, porque saiu uma notinha com uma paulada num jornal: “Lula, o candidato a presidente, num ambiente fechado como o Chaumière, acendeu um charuto”. Comentei: “Ele não vai voltar mais aqui, vai achar que eu que liguei para o jornal para falar isso”. E realmente nunca mais voltou.
Quando Dilma veio, ela acendeu, se não me falha a memória, uma cigarrilha francesa. Um casal no fundo reclamou: “Puxa, se pudesse pedir para a ministra apagar o cigarro, está incomodando aqui”. Falei com ela. Dilma pediu a conta e nunca mais voltou. A admiração que tenho por Lula é por sua inteligência, sua história. Saiu de onde saiu e chegar aonde chegou. Pena, pena! Para nós, brasileiros, foi uma decepção! Achei que o Lula daria um jeito na corrupção. No entanto, pelo que vejo por aí, a coisa desandou mais ainda.
Quando o Rodrigo Janot ainda estava como procurador-geral da República, brinquei com ele: “Procurador! Pare de prender o povo! Toda vez que o senhor faz uma operação, são dois, três clientes meus! Daqui a pouco vou ficar sem clientes!”. Ele riu e me disse: “Vou lhe dar um conselho. Vai lá em Curitiba e abre um restaurante ali na porta da Polícia Federal que você vai vender bem lá!”. Na verdade, tenho muitos clientes lá. Às vezes, me perguntam se recebo pedidos para levar comida para o presídio da Papuda. Recebo, sim. Meu filho Alex jogou muito tempo no Fluminense por intervenção do Luiz Estevão (ex-senador do Distrito Federal, preso na Papuda). Sempre que falam dele para mim, digo que tenho um carinho muito grande pelo Luiz Estevão, viu? Para o país, meus clientes podem ter sido ruins, mas, para mim, todos foram ótimos.
Eu e madame Lucette tínhamos um caderno em que marcávamos toda vez que eu pagava um pouquinho a ela. Naquela época, paguei o restaurante em dois anos, ganhei meu dinheirinho, comprei um apartamento, ajudei minha família. Hoje, vou para o vermelho em vários meses. Temos um sócio que praticamente não faz nada e, no entanto, ganha mais do que eu e minha mulher, Maria, que trabalhamos duro. Já passei muita crise, mas como esta nunca! Ela é enorme, duradoura e vejo pouca esperança. Isso me faz ficar triste, me dá uma angústia enorme e me levou a uma arritmia cardíaca, apesar de ser um homem saudável, esportista, que não bebe nem fuma. Minha preocupação é que, como estou vendo a coisa por aí, esta crise ainda vai levar um longo tempo para se resolver. Mas Severino, filho de vaqueiro, não entrega os pontos de jeito nenhum. O Chaumière continuará.
Severino Xavier, em depoimento a Maria Lima, Epoca