Se o mundo do vinho guarda segredos insondáveis para a maioria das pessoas, ao menos um brasileiro tem dedicado toda sua vida a desvendá-los. Nascido em Marechal Cândido Rondon, no Paraná, Dirceu Vianna Júnior, 48 anos, estudou Engenharia Florestal e Direito antes de se mudar para o Reino Unido, em 1989, onde vive desde então. Lá, tornou-se o único representante da língua portuguesa com o título de Master of Wine, a mais alta qualificação de excelência profissional em vinhos do mundo. Com quase três décadas de experiência nessa indústria, Dirceu publicou, em 2010, um rigoroso estudo sobre a qualidade do merlot produzido no Brasil, do qual fez parte uma degustação às cegas com amostras de onze países avaliadas por 40 especialistas. O resultado entrou para história: oito dos dez rótulos com as melhores notas eram brasileiros, inclusive o primeiro colocado. Em visita ao Brasil a convite do evento Vinhos de Portugal, ele deu a seguinte entrevista à ISTOÉ, na qual dá dicas de como escolher boas garrafas a preços acessíveis e explica por que alguns rótulos custam tanto.
A indústria do vinho está em franca transformação, com o crescente interesse da China e de outros mercados importantes. De que forma isso pode se traduzir em bebidas melhores na taça?
O mercado global está sempre se transformando e certamente o mercado chinês representa uma boa oportunidade para produtores devido à sua enorme escala — embora seja um mercado difícil e com muitos desafios de logística, legislativos e culturais. Não acho correto mudar a estratégia de qualquer empresa em função de um mercado apenas. O produtor deve olhar para o mercado global como um todo. Certamente a pressão comercial de uma forma geral impacta diretamente na qualidade do produto.
Como os produtores reagem às novas demandas do consumidor de vinhos?
Produtores sérios estão buscando aprimoramento através de intercambio de conhecimento, buscando técnicas modernas tanto nos vinhedos quanto na adega, o que resulta em vinhos melhores. Acredito que o nível de qualidade dos vinhos, de uma forma global, nunca esteve tão bom quanto hoje. Essa pressão de mercado é boa para o consumidor, pois força o produtor a dar o melhor de si, resultando em vinhos de melhor qualidade.
Como nas obras de arte, o preço de um vinho pode ser subjetivo. O que justifica um vinho custar centenas de vezes mais que outro da mesma região e safra?
O custo bruto de produção de uma garrafa de vinho por melhor que seja, usando o melhor em termos de tecnologia, seleção de cachos, os melhores e mais caros barris, não deve passar de 100 reais. Além disso, é necessário adicionar transporte, margem de lucro do produtor e do distribuidor, impostos etc. Mesmo com todos os custos extras e uma margem de lucro generosa não é possível justificar os preços aplicados de forma racional. O que justifica o preço final é a lei da oferta e da procura, a história que o produtor conta — desde que ela seja capaz de envolver emocionalmente o consumidor — e, no final de tudo, o que o cliente está disposto a pagar por certa garrafa.
Vinhos de preços muitos distintos podem se equivaler em termos de qualidade?
O preço de um vinho não necessariamente significa qualidade. Até dentro de regiões como Bordeaux (onde são feitos alguns dos mais caros vinhos da França) existem opções com preços bastante inferiores que são tão boas ou até melhores que os rótulos famosos. Basta procurar.
O que é mais importante levar em conta na hora da compra?
Quando eu decido comprar um livro, ou mesmo antes de ler algum artigo, eu busco saber quem é o autor. Com o vinho não é diferente. Eu acho importante saber quem fez o vinho, qual a safra e como o vinho foi armazenado. Este último detalhe é fundamental em um pais de clima quente como o Brasil.
Isso vale também para os vinhos do dia a dia?
Valem as mesmas informações sobre quem fez o vinho e como ele foi armazenado. Nesse caso, a safra, na minha opinião, é menos importante. Entretanto eu sugiro buscar vinhos de safras mais recentes para ter certeza que se encontram em boas condições.
O que você pensa sobre as pontuações da crítica? Já houve escândalos de corrupção nesse meio…
Trabalho para uma publicação inglesa chamada “Decanter” e uma portuguesa chamada “Grandes Escolhas”. O nível de profissionalismo e ética em ambas publicações é impecável. Tenho muito amigos e colegas que julgam competições e escrevem artigos em várias partes do mundo. Todos, pelo que sei, são perfeitamente éticos. Todos Masters of Wine devem assinar um código de ética que rege suas atividades profissionais. Acho que nenhum de meus colegas iria sacrificar anos de sua vida para atingir o titulo máximo no mundo de vinhos e depois arriscar perde-lo por questão ética. Com certeza existem pessoas na indústria que não são bons degustadores ou não mantêm o mesmo nível de profissionalismo. Resta ao leitor e consumidor escolher em quem eles confiam e quem vão seguir.
O consumo de vinho no Brasil tem se mantido estável em termos de volume, mas há quem note uma evolução qualitativa no gosto do consumidor. Concorda?
Não vou chamar isso de revolução, mas certamente houve uma evolução em matéria de conhecimento do consumidor brasileiro. Eu mesmo noto isso nas palestras que dou no Rio de Janeiro e em São Paulo anualmente. Ê ótimo ver o nível de interesse e conhecimento crescer. Isso é muito bom para a indústria como um todo.
De que forma isso influencia os produtores?
O próprio produtor é mais questionado e isso ajuda a manter a qualidade elevada. No passado não foi assim. Tenho exemplo de um produtor conhecido do sul do País que anos atrás optava por usar rolhas de baixa qualidade em seus vinhos mais baratos. Isso muitas vezes afetava o produto negativamente. Hoje isso mudou, ainda bem.
Seu estudo sobre a qualidade do merlot brasileiro ajudou a mudar a percepção do vinho nacional, mas o consumidor ainda resiste em comprar os vinhos do próprio país. Por quê?
O estudo foi feito com o objetivo de dar um pouco de foco aos vinhos do Brasil no exterior, avaliar sua qualidade e principalmente explicar aos produtores o que deveria ser feito para que os vinhos evoluíssem ainda mais. Apesar de ter usado grandes enólogos de várias partes do mundo para avaliar os vinhos tecnicamente, não estou convencido que os produtores brasileiros tiraram proveito desse trabalho. Na minha opinião, grande parte dos produtores brasileiros não está tão aberta para receber críticas construtivas comparando com produtores de outras partes do mundo. De qualquer forma, gerou notícia e isso foi bom para o Brasil. Os vinhos melhoraram mas ainda há um longo caminho a percorrer. Pelo lado dos produtores, devido ao custo elevado de produção no Brasil, com taxas e impostos, não fica fácil competir com vinhos do Chile e Argentina.
O que poderia ser feito para mudar esse quadro?
O governo poderia ajudar, mas a indústria de vinhos é muito pequena em comparação com a indústria de cerveja — e não acredito que isso vá acontecer tão rapidamente.
Qual o papel do produtor para convencer o consumidor?
O produtor brasileiro deve se abrir um pouco mais para trocar conhecimentos, focar na qualidade e ter paciência.
A safra 2018 é considerada uma das melhores da história do Brasil. Isso pode influenciar na aceitação dos produtos brasileiros?
Uma boa safra apenas não será suficiente para mudar muita coisa, mas caso fosse consultor de algum produtor eu certamente faria um plano para abrir certas portas de mercado internacional, pois agora é um bom momento.
A vocação do Brasil para a produção de espumantes de qualidade é reconhecida internacionalmente. Deveríamos investir mais nesse produto?
Acredito que apostar em espumantes é o caminho certo. Entretanto, não devemos abrir mãos de outros estilos. Uma das grandes vantagens do mundo do vinho é a diversidade. Devemos preservar e celebrar isso.
Novas regiões produtoras, caso da Campanha Gaúcha e da Serra da Mantiqueira, podem se firmar como “terroirs” para a produção de tintos superiores?
Nada que vale a pena obter pode ser construído rapidamente. E necessário ter paciência. O Brasil deve primeiramente se firmar como um produtor de grandes vinhos. O maior problema é que os principais produtores de vinho do Brasil têm como objetivo vender grandes volumes para fora e essa estratégia está errada. Deveria vender qualidade no mercado externo e construir uma imagem semelhante à da Nova Zelândia, que apostou na qualidade e consistência. Hoje, vende vinhos a preços muito mais altos em comparação com outros países. O Brasil não consegue competir em preço, deve investir em qualidade, qualidade e qualidade. Depois de construir a imagem de um país que produz qualidade, podemos pensar em subdivisão de terroir. Por enquanto todos os produtores devem lutar pela mesma bandeira.
Embora viva fora do Brasil há quase 30 anos, você consegue acompanhar a produção local? O que tem chamado a sua atenção?
Já existem bons produtores nacionais, como por exemplo a vinícola Guaspari, de Espírito Santo do Pimnhal (SP) e vários no sul do País, como Pizzato, Cave Geisse, Casa Valduga. Outro dia fui surpreendido por um vinho branco chamado Clos Cattacini, feito da casta italiana cha Trebbiano Romagnolo. Um pequeno produtor fazendo vinho com muita dedicação. Ainda falta massa critica e o Brasil precisa de mais produtores como esses.
Por Celso Masson, IstoE