sábado, 30 de junho de 2018

Transiberiana: Capital da Sibéria, Novosibirsk é o Vale do Silício russo

Enquanto o táxi acelerava pela estrada, eu não parava de pensar que havia anotado o endereço errado. De um lado, taiga — a tradicional floresta siberiana. Do outro, mais taiga. 

Após alguns minutos, quando eu já estava me conformando com o fato de ser vítima de algum golpe, enfim surge o prédio da Universidade Estadual de Novosibirsk. No meio do nada, cercada por natureza, está Akademgorodok, um dos grandes tesouros da Rússia atual.

Esse bairro de nome complicado, que significa Cidade Acadêmica, fica a cerca de 30 km de Novosibirsk, capital da Sibéria. O local foi construído em 1957, por decreto do então líder soviético Nikita Kruschev, para concentrar os “cérebros” do país. Além da universidade, considerada uma das principais do país, a região agrupa ainda cerca de 30 institutos de pesquisa em física, biologia, geologia, matemática e outras disciplinas. Akademgorodok é uma “nerdlândia”. Sheldon Cooper, de “Big Bang Theory”, estaria em casa.

— Conheço um ou dois caras aqui que são iguais ao Sheldon. Como você pode imaginar, essa série faz grande sucesso na cidade — brinca Stepan Belyakin, um dos “cérebros” de Akademgorodok, enquanto mostra as pacatas ruas do bairro.


Um dos prédios da cidade universitária na capital da Sibéria - Renato de Alexandrino : Renato Alexandrino


Para qualquer lado há um instituto de pesquisa, o que rendeu ao local o apelido de Vale do Silício russo. Akademgorodok ganhou ainda outro título: sua rua principal, a Lavrentyev, entrou para o “Guinness” como “a rua mais inteligente do mundo”, com seus quase 20 institutos distribuídos em pouco mais de dois quilômetros. Em um canto florido, encontro um monumento fofo em homenagem aos camundongos usados nas pesquisas em laboratório: um ratinho idoso, de óculos, tricota uma representação do DNA.

A escolha por uma área tão distante e isolada não foi por acaso. Novosibirsk fica a mais de 3 mil km de Moscou. Longe, bem longe, de qualquer influência política do Kremlin. No meio da floresta, os cientistas podem se dedicar com mais tranquilidade ao trabalho. Mesmo na década de 1960, quando havia proibição de pesquisas na área de genética, na longínqua Sibéria isso não era um problema.

— “Ah, lá longe podem fazer essas coisas estúpidas” era o pensamento geral — diverte-se Belyakin.

Aos 39 anos, Belyakin é chefe do Instituto de Biologia Molecular e Celular de Akademgorodok. Para o city tour, ele chama um amigo, Vladimir Trifonov, que trabalha em pesquisas de genoma e chega se apresentando em português: “oi, tudo bem?”. Trifonov passou dois meses estudando e trabalhando em Rio Claro, no interior paulista. Entramos no delicado assunto do brain drain, a “fuga de cérebros” que aconteceu com o fim da União Soviética. Investimentos e salários caíram drasticamente, e muitos cientistas saíram do país.
Monumento em tributo aos ratos de pesquisa - Renato de Alexandrino : Renato Alexandrino
— Foi uma época difícil. A situação agora é muito melhor. Podemos estudar em paz, há dinheiro, bons equipamentos. Claro que podemos melhorar, mas é possível dizer que lideramos as pesquisas em algumas áreas — diz Trifonov, de 53 anos.

Para mostrar que Akademgorodok não é só pesquisa, a dupla apresenta o compacto centro da cidade. Uma casa de shows, cafés, uma loja de siberian burgers e até mesmo um pub irlandês.

— Cientistas são pessoas normais. Precisamos de pubs! E vamos à praia — ri Belyakin.

Praia? Sim, há praia na Sibéria. Caminhamos mais alguns minutos e chegamos bem a tempo de ver o desembarque de um trem. As portas do vagão se abrem, e as pessoas descem apressadas. De chinelos de dedo, bermudas, carregando mochilas e toalhas. A cena poderia estar acontecendo na Cardeal Arcoverde ou na General Osório, mas era numa estação no meio da Rússia, a milhares de quilômetros do oceano mais próximo.

BRONZE NO LAGO ARTIFICIAL

A areia é escura e grossa. A água, doce. Trata-se de um lago artificial criado em 1957 com as águas do Rio Ob. Os russos aproveitam o sol forte, de quase 30 graus, para se bronzear e até jogar um vôlei de praia. Altinha? Não tem. Cerveja na areia? Também não. A bebida mais procurada é o kvas, uma espécie de mate local, fermentado à base do pão. Tem um mínimo teor alcoólico (menos de 1%) e um gosto levemente ácido. Sou mais o mate de galão. Lamento pelos russos, mas a Praia Central de Novosibirsk perde de longe para Ipanema.

Até o nome é um pouco artificial, afinal a Praia Central fica a cerca de 40 minutos de trem de Novosibirsk. A principal metrópole da Sibéria tem 1,5 milhão de habitantes, é a terceira mais populosa da Rússia, mas a distância de mais de 3 mil km de Moscou jogou contra, e a cidade ficou fora da Copa. Uma pena, pois Novosibirsk é moderna, com muitos restaurantes enfileirados na rua — adivinhe — Lenina (toda cidade tem uma rua em homenagem a Lênin).

O teatro de ópera e balé é uma construção colossal, com quase 12 mil m² e capacidade para 1.800 pessoas. É o maior do país, superando até mesmo o Bolshoi de Moscou, e tem o apelido de Coliseu da Sibéria. A cena cultural é ativa, e o domingo que festejava o aniversário da cidade foi de festa, com muitos artistas e bandas se apresentando pelas ruas, e o povo curtindo em família.

Com apenas 125 anos, Novosibirsk nasceu junto à transiberiana. A cidade foi fundada pelos trabalhadores contratados para construir a ferrovia que conectaria Moscou à distante costa do Pacífico, cruzando, e colonizando, a inóspita e inexplorada Sibéria.

O crescimento foi rápido, e em 1962 Novosibirsk tornou-se a mais jovem cidade do mundo a atingir um milhão de habitantes. O desenvolvimento precoce cobrou um preço, e a capital da Sibéria foi a cidade com mais cara de brasileira, no mau sentido, que visitei até aqui na Rota Transiberiana. Calçadas rachadas, ruas esburacadas, trânsito pesado.

Os carros sempre param quando você coloca o pé na faixa de segurança, uma educação a que infelizmente não estamos acostumados no Rio, mas aqui foi o primeiro lugar na Rússia em que vi carros bloqueando cruzamentos.

— Novosibirsk é uma bagunça. Aposto que era um taxista! — ri Stepan Belyakin.
Rússia e Brasil têm mesmo mais em comum do que imaginamos.




Renato de Alexandrino, O Globo