Com o negro Pelé e o mestiço Garrincha, o Brasil conquistou a primeira Copa do Mundo há 60 anos, no dia 29 de junho. Citar hoje a cor da pele dos dois craques do time que venceu o Mundial na Suécia não faz sentido, em 1958 isso era algo relevante.
O Mundial que moldou a imagem do Brasil vencedor no futebol serviu para derrubar uma tese criada quatro anos antes da conquista. A derrota por 4 a 2 para a Hungria nas quartas de final do torneio de 1954, na Suíça, seguida de uma confusão entre as equipes ao final, levou o chefe da delegação, João Lyra Filho (1906-1988), a escrever um relatório sobre a campanha.
O advogado e dirigente esportivo escreveu o documento que virou o livro "Taça do Mundo, 1954". Nele, elenca uma série de argumentos para justificar mais um insucesso do país na Copa.
Os brasileiros não tinham a mesma frieza dos europeus em momentos de decisão, além de serem menos instruídos, dizia. O dirigente também traça paralelos entre a equipe e o povo brasileiro e expõe a questão da miscigenação como grande problema para a seleção ser competitiva.
Lyra Filho aponta o que define como valorização do improviso e do "feitiço da exibição", características que ele credita a negros e mestiços.
"No futebol brasileiro, o rendilhado vistoso confere expressão de arte à prova, em prejuízo do rendimento e do resultado. A exibição compromete a competição. Fácil será confrontar a fisionomia de um selecionado brasileiro, constituído de pretos e mulatos em maior número, com a fisionomia do futebol argentino, alemão, húngaro ou inglês", escreveu o dirigente.
"O futebol brasileiro extrema-se na superfície vistosa dos efeitos (exibição), quando aquele que mais se caracteriza se desdobra na profundidade rendosa do resultado (competição). Ainda não se dissociou o estudo do futebol brasileiro do conhecimento aplicado na capoeiragem", conclui o cartola.
"Ele dizia que os brasileiros tinham muito brio, tinham bom físico, mas improvisavam demais e eram espontâneos. Já os europeus tinham autocontrole, uma alta cultura. Isso é muito evolucionismo e ele era muito preconceituoso", afirma a antropóloga Simoni Lahud Guedes, da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Para a antropóloga, o dirigente havia lido muito sobre ciências humanas, mas não tinha formação na área, o que o levou a cometer equívocos, como misturar no relatório autores evolucionistas com culturalistas, como Franz Boas --contrário ao evolucionismo.
A antropóloga destaca que João Lyra Filho levava em consideração o fato de os jogadores da Hungria terem nível universitário e os da seleção brasileira serem praticamente analfabetos.
Para entender todo o contexto, é preciso retornar ao Mundial de 1938, disputado na França, quando o Brasil ficou em terceiro e foi recebido de volta ao país por milhares de torcedores. Algo inimaginável nos dias atuais.
O bom desempenho da equipe nacional, creditado em especial ao zagueiro Domingos da Guia e ao atacante Leônidas da Silva, jogadores negros, abafou o preconceito, comum na época.
O futebol brasileiro vivia uma década de transformação, com sua profissionalização e a abertura de portas de clubes a jogadores negros, algo que poucas agremiações tinham feito até então.
"Em 1938, o Brasil se acostuma com essa autorrepresentação do herói mestiço", afirma o professor da FGV Bernardo Buarque de Hollanda.
A boa campanha gerou grande expectativa no país pelo título mundial. Segundo Buarque de Hollanda, a imprensa da época ajudou a fomentar esse sentimento, que só aumentou com o fato de a Segunda Guerra (1939-1945) impor uma pausa nas Copas.
O jornalista Mário Filho (1908-1966), do Jornal dos Sports, do Rio, foi um dos entusiastas. Em seus artigos exaltava o jeito brasileiro de jogar, de Leônidas da Silva, que se diferenciava dos europeus pela habilidade.
O craque, aliás, é figura-chave do livro "O Negro no Futebol" (1947), de autoria do jornalista, que tem em sua primeira edição prefácio escrito por Gilberto Freyre (1900-1987), autor do clássico "Casa Grande e Senzala" (1933).
Na obra, o autor narra a trajetória do negro brasileiro num esporte de origem europeia, praticado pela elite, e destaca como sua maneira peculiar de jogar o ajuda a se inserir em uma sociedade repleta de preconceito.
"Quando ele termina de escrever o livro, em 1947, ele afirma com todas as letras que a democracia racial tinha chegado ao futebol", diz a pesquisadora da Uerj (Universidade do Estado do Rio) Leda Costa.
As derrotas nos Mundiais de 1950 e 1954, no entanto, desmentiram a tese do jornalista.
A pesquisadora lembra que a imprensa, em especial o Jornal dos Sports, é responsável por transformar Barbosa no grande vilão do Mundial de 1950. Ele fora acusado de falhar no jogo, principalmente no segundo gol, marcado por Ghiggia, do Uruguai.
Além do goleiro, os defensores Bigode e Juvenal foram apontados na época como culpados. Coincidência ou não, os três jogadores mais lembrados eram negros ou mestiços.
"Havia a ideia de que a mestiçagem degeneraria. Nos anos 1920, Lyra Filho defendia o embranquecimento, que era para eliminar a mestiçagem. O pior não era o negro, e sim o fruto da mistura entre o branco e o negro", explica Bernardo Buarque de Hollanda, da FGV.
Justamente dos pés desses discriminados veio o primeiro título mundial da seleção, conquistado na Suécia, em 1958. Pelé e Garrincha-- um negro e um mestiço-- foram os grandes nomes da conquista, com dribles, ginga e habilidade, características desprezadas por João Lyra Filho.
A vitória de 1958 e a seguinte em 1962 levaram o jornalista Mário Filho a publicar nova edição do livro "O Negro no Futebol", com Pelé reverenciado e dois novos capítulos.
Ele também reconhece que a derrota em 1950 "provocou um recrudescimento do racismo" e que a primeira versão de sua obra trazia uma análise "superficial" e "otimista a respeito da integração racial".
O bicampeonato não mudou o pensamento de Lyra Filho, que acreditava que o título só viria "por acaso, assim como por acaso foi descoberto [o país], foi proclamada a Abolição, a Independência e a República".
Alberto Nogueira e Jair dos Santos Cortecertu, Folha de São Paulo