sexta-feira, 29 de junho de 2018

"A resiliência do atraso", por Rogério Furquim Werneck

Interesses contrariados tentam anular a extinção do imposto sindical no Supremo Tribunal Federal


É triste constatar que, na infindável batalha contra o atraso, avanços conquistados a duras penas podem ser facilmente revertidos. E que os retrocessos costumam ser bem mais rápidos do que os avanços. Sobram evidências de que a resiliência do atraso pode ser surpreendentemente alta. Num piscar de olhos, interesses nele encastelados podem reverter mudanças importantes que já pareciam consolidadas e restaurar o arranjo anterior em que se locupletavam. E quão bem encasteladas podem ser as forças que defendem a preservação do atraso...

Um bom exemplo é a extinção da contribuição sindical obrigatória. Durante três quartos de século, uma legislação fascista, criada na ditadura Vargas sob inequívoca inspiração da Carta del Lavoro de Benito Mussolini, obrigou indivíduos e empresas a contribuir compulsoriamente para o sustento de uma estrutura sindical artificial e hipertrofiada, em grande parte tomada por pelegos de todo tipo, que pouco ou nada faziam pelos interesses dos trabalhadores e das empresas que supostamente deveriam representar.

Em conjunto com a unicidade sindical, peça complementar do ferrolho fascista encrustado na legislação trabalhista, a contribuição sindical obrigatória vinha sendo o principal esteio do nefasto corporativismo brasileiro. Foi um grande avanço, portanto, ter o Congresso decidido, afinal, no ano passado, extinguir a contribuição sindical obrigatória.

Menos de um ano depois, contudo, os interesses contrariados, alinhados em emblemática coalizão de entidades laborais e patronais, estão agora mobilizados para tentar reverter na Justiça a extinção do imposto sindical. Querem que o Supremo Tribunal Federal declare que a medida aprovada pelo Congresso é inconstitucional.

Diante do pedido de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade que lhe coube apreciar, o ministro Edson Fachin entendeu que, tendo em vista a importância do tema, seria mais prudente abrir mão de uma decisão monocrática e encaminhar a questão ao colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal, para julgamento agendado para ontem, 28 de junho.

No ínterim, o ministro Edson Fachin deu a público um despacho, datado de 30 de maio de 2018, em que, ao longo de 35 páginas, socorre-se da opinião de doutrinadores eminentes e externa suas próprias considerações sobre a questão em pauta. Ver 
https://www.conjur.com.br/dl/fachin-fim-contribuicao-sindical-acabar.pdf
Tendo de finalizar este artigo ainda sem saber o desfecho do julgamento agendado para ontem, me atenho à análise do despacho do ministro relator. O que chama a atenção no documento, antes de mais nada, é quão arraigada, entre boa parte dos doutrinadores citados, é a percepção de que a contribuição sindical obrigatória e a unicidade sindical são peças indissociáveis e cruciais do arranjo legado pelo Estado Novo. E de que não há como evoluir para um sistema baseado em contribuições facultativas sem desestruturar todo o sistema sindical do país.

Setenta e cinco anos depois de ter sido imposto à sociedade brasileira o arranjo sindical mussoliniano, parte importante da elite intelectual do país continua presa à mentalidade forjada pelo lado fascista do varguismo, incapaz de pensar fora da caixa e de perceber quão perversa tem sido a disfuncionalidade desse arranjo e a importância de desmontá-lo com urgência. Não se percebe que basta a extinção da contribuição sindical obrigatória para destravar o ferrolho que vem impedindo a modernização do regime sindical brasileiro. 

E que é o acirramento de contradições deflagrado por tal destravamento que deverá engendrar essa modernização.

Não chega a ser surpreendente que, em meio a essa incapacidade de percepção, o próprio ministro Fachin externe seu temor de que a extinção possa implicar “desfiguração do regime sindical constituído em 1988” e “frustração de toda uma gama de direitos fundamentais sociais, os quais de forma direta ou indireta, nele estão sustentados”.
Não há como ter ilusões. Nessa questão, a batalha contra o atraso promete ser dura e longa.

Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio

O Globo