sábado, 5 de maio de 2018

"O Fed convencional de Donald Trump", por Kenneth Rogoff

O Globo

As nomeações do presidente americano para o banco central chamaram a atenção pela qualidade técnica


Numa presidência que tem mostrado pouca consideração pelas normas institucionais convencionais, como explicar as nomeações completamente razoáveis para a diretoria do Federal Reserve (Fed, o banco central americano)? As nomeações mais recentes — o professor de Columbia Richard Clarida e Michelle Bowman, comissário do banco para o estado do Kansas — mantêm o padrão de escolha de técnicos experientes, a começar pela mais importante, com Jerome Powell, o novo presidente do Fed.

Se Trump fosse um presidente normal, escolhendo indivíduos altamente respeitados capazes de garantir a formulação de políticas eficazes, estaria tudo dentro do normal. Mas eis um presidente que, com frequência, tem escolhido autoridades com pouca experiência de governo, para, em seguida, incumbi-las a criar o máximo de perturbação possível nas áreas para as quais foram escolhidas para dirigir. Mas, no caso do Fed, o autor do livro “The Art of the Deal” (“A arte do acordo”) nomeou como vice-presidente um acadêmico (Clarida), cujo ensaio mais reconhecido se chama “The Science of Monetary Policy” (“A ciência da política monetária”).

Tudo bem, pode-se argumentar que dar crédito a Trump por manter a estabilidade no Fed é como dar boas notas por não começar uma guerra nuclear. A ideia de independência do Banco Central ganhou forte impulso nos últimos 30 anos entre políticos de todo o mundo. Não apenas é a norma em democracias como os EUA, a zona do euro e o Japão, mas até mesmo líderes poderosos, como o presidente russo, Vladimir Putin, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, pensam duas vezes antes de desafiar seus bancos centrais.

Mas as pessoas se esquecem de quão nova de fato é a ideia de independência do Banco Central. O venerável Banco da Inglaterra obteve independência monetária há apenas 20 anos. Nos anos 1980, quando escrevi um ensaio acadêmico defendendo a independência como um instrumento para estabelecer a credibilidade anti-inflacionária dos bancos centrais, um a um os periódicos acadêmicos o rejeitaram. Os árbitros zombaram da ideia de que a independência poderia ser mais do que uma fachada sem valor, facilmente destruída pelo governo.

O que nos traz de volta a Trump. Estará ele apenas pausando antes de pressionar o Fed a estimular a economia, antes das eleições de 2020, e, ao fim e ao cabo, monetizar os pesados déficits causados pelo corte de impostos? Se for este o plano — e quem realmente acredita que um Trump encurralado não recorreria a uma inflação mais alta? — a boa notícia é que suas escolhas para o Fed não tornarão sua missão fácil.

Trump parece não entender isso. Afinal, na campanha eleitoral de 2016, ele próprio investiu contra a antecessora de Powell, Janet Yellen, por supostamente manter baixa a taxa básica de juros para facilitar a eleição de Hillary Clinton. Agora, como presidente, é exatamente isso que ele gostaria de ver em 2020. Ao entrevistar os candidatos à sucessão de Yellen no ano passado, ele supostamente indagou apenas uma questão central: “Você não vai subir a taxa de juros e estragar meu lindo mercado de ações, não é?”.

É verdade que Trump encontra-se um tanto limitado pela necessidade de obter a aprovação do Senado para suas nomeações. Aliás, alguns republicanos conservadores se opuseram a uma de suas indicações: Marvin Goodfriend, da Universidade de Carnegie Mellon, por ter tido a ousadia de sugerir que o Fed pode vir a precisar de uma nova abordagem à política monetária (taxa de juros negativa) para enfrentar a próxima grande recessão ou crise financeira. E, embora algum dia o Fed irá muito provavelmente acolher esse conselho, a nomeação de Goodfriend quase não sobreviveu ao Comitê de Bancos do Senado americano. Mas, em geral, o Senado deu a Trump o que ele quer, e muitos republicanos teriam abraçado um desregulador — por exemplo, um discípulo de Ron Paul — ou outro conservador pregando uma volta ao padrão ouro de antes da Primeira Guerra Mundial.

Infelizmente, a batalha pela independência do Fed está longe de ter acabado. Trump pode estar apenas mantendo sua pólvora seca até que um conflito real surja. Agora, os planejados aumentos das taxas de juros pelo Fed são em boa parte profiláticos. A inflação está subindo bem lentamente, mesmo com a economia dando sinais de estar em brasa. 

Mas o momento da verdade ainda pode ocorrer. E, considerando que Trump se mantenha saudável, evite o impeachment, e concorra novamente, a última coisa que ele iria querer em 2019 e 2020 são altíssimas taxas de juros, um aumento prematuro do desemprego, e um provável colapso dos preços em seu belo mercado de ações.

Numa crise, a tão propalada independência do Fed pode se mostrar mais frágil do que as pessoas imaginam. Não está consagrada na Constituição dos EUA, e o presidente e o Congresso possuem vários níveis de controle. Um ato do Congresso criou o Fed em 1913, e em princípio o Congresso poderia revê-lo, digamos, aumentando enormemente o poder de supervisão congressual ou cortando seu financiamento. De fato, de tempos em tempos leis tramitaram pelo Congresso que teriam feito exatamente isso.

Por enquanto, os indicados para o Fed foram tratados quase tão bem quanto os generais no universo de Trump. É verdade que, com déficits inflados e a aproximação da campanha eleitoral de 2020, se verão testes à frente. Mas, por enquanto, reconheçamos que esta é uma área onde a presidência de Trump tem sido quase normal — até agora.

Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI, é professor de Economia e Política Pública na Universidade de Harvard