José Nêumanne, O Estado de São Paulo
O sucesso e a força do bloqueio dos caminhoneiros autônomos, ao que parece com apoio de transportadoras de cargas, devem-se ao cansaço da sociedade de tudo o quanto esta vem sendo informada sobre recorrentes problemas do Estado brasileiro. Esta é a opinião de um dos mais respeitados especialistas no Brasil em cooperativismo e agronegócio, o professor da USP e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Roberto Rodrigues, que foi secretário da Agricultura do Estado de São Paulo no governo Fleury e ministro da Agricultura no primeiro mandato de Lula. Em sua opinião, a situação chegou ao estágio que atingiu por erros do governo Temer, “que deveria ter tomado providências antecipadas, eventualmente até as mesmas que tomou depois de pressionado, o que deu a impressão a todo mundo de falta de firmeza, falta de autoridade e falta de rumo”.
Roberto Rodrigues é engenheiro agrônomo e agricultor, presidiu várias entidades ligadas ao setor rural, como a Organização das Cooperativas Brasileiras, a Sociedade Rural Brasileira, a Associação Brasileira do Agronegócio, a Academia Brasileira da Agropecuária da SNA, a Aliança Internacional das Cooperativas, o Conselho Consultivo da Unica e a Trading Eximcoop, entre outras. Foi secretário da Agricultura do Estado de São Paulo (1993-94) e ministro da Agricultura, Pecuária a Abastecimento do Brasil entre 2003 e 2006. Foi professor do Departamento de Economia Rural da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp – Jaboticabal. Autor de nove livros e coautor de vários outros, atualmente é coordenador do Centro de Agronegócios da Escola de Economia de São Paulo da FGV, embaixador Especial da FAO para as Cooperativas, presidente da EsalqShow e titular da Cátedra do Agronegócio da USP. Também participa de diversos conselhos de instituições, academias e empresas e preside o Lide Agronegócios.
A seguir, Nêumanne entrevista Roberto Rodrigues
Por que hoje em dia os caminhoneiros autônomos e as transportadoras de cargas, juntos, têm um poder de barganha e de chantagem com a sociedade e perante o governo como nenhum outro estamento social jamais teve na História?
RR– A sociedade em geral está cansada de tudo o que tem sido veiculado quanto aos recorrentes problemas envolvendo o Estado brasileiro. A frustração com a retomada da economia, prevista para os primeiros meses deste ano, a completa incerteza quanto ao resultado das eleições de outubro, a incompetência/impotência dos Executivos, a posição eleiçoeira do Legislativo, a postura teatral do Judiciário, o noticiário recorrente sobre corrupção de todo lado, o sentimento de “falta” de tudo (educação, saúde, transporte, segurança, emprego, oportunidades), enfim, o cenário é tão ruim que a paralisação ocorrida nos últimos dias foi uma espécie de “desaguadouro” desse cansaço, por mais justa que seja a reivindicação dos caminhoneiros, especialmente os autônomos. Ninguém quer saber das consequências da falta de transporte quanto ao abastecimento de gêneros, de quem vai pagar o custo de qualquer acordo, dos pesados prejuízos que vários setores da economia estão sofrendo. Foi uma reação não refletida a um estado de coisas realmente insuportável. Daí o poder potencializado dos agentes de transporte. É claro que eles têm mesmo um poder natural expressivo, oriundo da estrutura nacional de transportes baseada em rodovias. Mas a crise de liderança alimentou isso.
N – Se o senhor fizesse parte da equipe ministerial, como já fez antes, teria sido surpreendido por um movimento das dimensões deste último, que comprometeu o abastecimento de combustível e prejudicou hospitais, farmácias, açougues e supermercados, tornando inviáveis até as feiras livres?
RR– Bem, conforme amplamente noticiado, o governo foi avisado mais de uma vez sobre uma eventual manifestação dessa natureza. Portanto, não houve surpresa. Não se sabe se o governo não acreditou nos sinais dados, se menosprezou as lideranças em função da dispersão e multiplicidade delas ou se simplesmente, por incompetência pura, não conseguiu se antecipar ao processo deflagrado. Qualquer que seja a alternativa - ou até se foi uma soma das três – deveria ter tomado providências antecipadas, eventualmente até as mesmas que tomou depois de pressionado, o que deu a impressão a todo mundo de falta de firmeza, falta de autoridade e falta de rumo. E as diferentes ações empreendidas após o acordo inicial – que aparentemente não foi um acordo geral – mostram essa insegurança sobre como se comportar numa crise de consequências muito sérias para a população inteira.
N – Como professor, executivo e ex-agente do Estado, o senhor se surpreendeu com o desconhecimento demonstrado pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na informação ao presidente da República tanto do descontentamento generalizado da população com a política de preços de combustíveis quanto das agruras sofridas pelos transportadores de produtos de importância estratégica capital para a sobrevivência e a tranquilidade da sociedade? E o que diz do congelamento dos preços de diesel, voltando às priscas eras dos “fiscais do Sarney”?
RR– Penso que organismos de avaliação e informação como a Abin devem estar sobrecarregados com os mais amplos e diversos sinais de descontentamento que a população vem dando de forma aleatória. O apoio total que a sociedade dá à Operação Lava Jato e ao Juiz Sergio Moro é prova disso. Estamos todos infelizes com o estado de coisas e não vemos horizontes mais suaves, até porque a sociedade civil também está sem lideranças com projetos claros e equilibrados de desenvolvimento. Nesse contexto, o congelamento dos preços do diesel não faz muita diferença para a opinião pública. Não pensamos na questão maior, estrutural, da tributação sobre os combustíveis e a energia, ou até do reajuste diário de preços, dadas a volatilidade do câmbio e dos preços internacionais do petróleo. Talvez fosse mais adequado reajustar os preços semanalmente ou até quinzenalmente do que diariamente.
N – Como o senhor, como homem dos setores produtivos cooperativista e agropecuário, mas também com experiências relevantes no Estado, tendo chegado a ministro da Agricultura no governo Lula, explica e encara o excesso de representantes e a escassez de representatividade de órgãos tidos como porta-vozes dos caminhoneiros, com os quais o governo equivocadamente negocia? Na quinta-feira 24 de maio, por exemplo, os ministros de Temer fizeram um acordo com 10 de 11 representantes de federações e confederações para na madrugada seguinte a trégua negociada afundar simplesmente pelo fato de que quem está na estrada não os conhece nem reconhece. Que tal?
RR– O tema da representatividade classista é também recorrente e se repete em muitos outros setores socioeconômicos, não apenas no caso em tela. Acredito que essa pluralidade de “representantes” seja ainda um rescaldo do modelo de desenvolvimento que o Brasil escolheu, muito dependente do governo. Ao longo da História, cansamos de assistir a empresários recorrendo aos organismos federais de arbitragem de preços em busca de suas margens e lucros, sem a menor ligação com o mercado real. E iam sendo criadas instituições de representação deste ou daquele setor à medida que pessoas tinham acesso a este ao àquele organismo ou presidente de organismo, sem considerar o interesse legítimo de todos os representados. Acresce levar em conta o tamanho do nosso país, as diferenças regionais enormes quanto a demandas e problemas, o que realmente dificulta a unidade de representação. Mas isso é agravado por vaidades, disputas por poder, ambições ou interesses menos republicanos de pessoas não qualificadas.
N – Outro ponto nevrálgico do movimento que deflagrou um caos social inédito na História foi a óbvia facilidade com que punhados de militantes estrategicamente espalhados em vários pontos do território nacional interromperam o tráfego nas rodovias. Não há mais como escapar desse monopólio do modal rodoviário, tornado crucial do governo Juscelino para cá, pela dificuldade de construir ferrovias e hidrovias que aliviem a concentração nas estradas?
RR– Esse é outro assunto debatido há décadas e todo mundo sabe que nosso modal é mais caro e inibidor de nossa competitividade. No agronegócio é exponencial, uma vez que nos últimos 40 anos a atividade rural, que era costeira, foi para o Centro-Oeste e o Norte-Nordeste, mas com ela não foram a infraestrutura e a logística. Não foram feitos investimentos em ferrovias e hidrovias, nem mesmo em armazenagem e portos, reduzindo nossa condição competitiva. Hoje existem vários estudos e projetos sérios que apontam quais obras seriam essenciais e prioritárias. Mas o Estado perdeu capacidade de investir, de modo que tais projetos só poderão sair do papel por meio de parcerias público-privadas. E estas, por sua vez, só se concretizarão se houver confiança no governo, se houver previsibilidade quanto a resultados, se houver segurança jurídica. Em outras palavras, somente com tais condições será possível melhorar nossa infraestrutura, mas mesmo assim vai demorar um tempo precioso.
N – À época em que o senhor ocupou cargos importantes no serviço público, as chamadas redes sociais não tinham essa importância que têm hoje na mobilização social. No entanto, como professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o senhor se mantém a par dessa nova realidade. Que saída vê para surpresas provocadas por movimentos de protesto na sociedade a cujas informações o Estado não tem acesso com o uso de WhatsApp e outros veículos cibernéticos?
RR– Esse problema não é brasileiro, é mundial. A Primavera Árabe foi marcante exemplo disso, com quedas de governos totalitários, sem lideranças específicas. Eleições recentes em grandes países tiveram a marca das redes sociais e até o Brexit foi por elas influenciado. Parece claro que tal influência crescerá no mundo todo, conclamando as populações a tomarem posição sobre questões de interesse geral, ajudando a eleger ou derrubar governos. Mas também parece que o que há por trás disso é a crescente demanda que os cidadãos de qualquer país têm de participar da governança de tudo: das empresas, das instituições, dos governos. E as redes sociais dão uma boa sensação dessa participação. Portanto, se os governos não se aparelharem para acompanhar o que se passa nelas, perderão o contato com uma realidade que pode trazer exigências e mudanças surpreendentes.
N – De uns anos para cá, o Brasil tem sobrevivido a crises econômicas terríveis graças ao agronegócio, que tem sido nosso esteio produtivo, uma verdadeira galinha dos ovos de ouro. A tecnologia do agronegócio brasileiro é respeitada no mundo desenvolvido e, de certa forma, tem compensado os problemas naturais do setor, como, por exemplo, a dependência da meteorologia. Como o agronegócio, que tem vencido enchentes e secas, sobreviverá ao estado cada vez mais deplorável da malha rodoviária nacional, principalmente fora do Sudeste, e em grande medida das deficiências do armazenamento e dos terminais portuários?
RR – De fato, como já foi dito, essa situação perturba a nossa competitividade atual e inibe maiores investimentos no agronegócio, sobretudo na promissora fronteira agrícola. Mais ainda: hoje é consenso que segurança alimentar global é sinônimo de paz. Não haverá paz onde houver fome. E estudos levados a efeito pela OCDE e pela FAO e agora aceitos até pelo Departamento de Agricultura dos EUA dão conta de que para haver segurança alimentar global será preciso aumentar em 20% a oferta de alimentos em dez anos. Mas para que isso se verifique o Brasil deverá aumentar a sua oferta internacional em 40%, o dobro do que o mundo precisa crescer. Isso porque temos uma tecnologia tropical sustentável respeitada, como você disse, porque temos terra para crescer e temos gente jovem e competente em todos os elos das cadeias produtivas. Mas isso não é suficiente: precisamos de uma estratégia articulada de longo prazo, em que a logística é tão importante quanto uma política de renda compatível com as que têm nossos competidores, com crédito rural moderno e flexível, com seguro agrícola decente, com preços de garantia realistas, com assistência técnica adequada ao pequeno produtor, com acordos comerciais bilaterais com grandes países consumidores de alimentos para garantir mercados, conquistar outros e agregar valor às commodities agrícolas, com estímulos à inovação tecnológica, com modernização de leis obsoletas, e assim por diante. Há um longo caminho a percorrer, sem trocadilho.
N – Outro gargalo importante do transporte de safras para esses terminais portuários é o combustível, principalmente o diesel, também componente de custo no agronegócio por conta das máquinas agrícolas. Até que ponto a política de preços que está salvando a Petrobrás, nossa maior estatal, da bancarrota tem prejudicado a atividade agropecuária? Ou será a absurda carga tributária, tanto da Cide e do PIS/Pasep, federais, quanto do ICMS, estadual, ainda mais prejudicial?
RR– A Petrobrás está no caminho certo, sobretudo se não se submeter a pressões governamentais, como no governo passado, que quase destruiu a empresa e o setor sucroenergético ao tentar controlar a inflação com a estagnação dos preços dos combustíveis. Talvez, como já disse, os reajustes de combustíveis devessem ser feitos com maior intervalo de tempo do que diariamente. Mas não há dúvida de que a carga tributária precisa ser revista. E, diga-se de passagem, não apenas nesse setor. É por demais sabido que temos uma dos maiores tributações do mundo e isso é insuportável para qualquer economia que se pretenda sustentável. Aliás, o governo de São Paulo deu um exemplo sobre como isso funciona há alguns anos, ao reduzir o ICMS sobre o etanol de 24% para 12%: o preço caiu para os consumidores e a arrecadação cresceu para o Estado.
N – O firme combate à corrupção no setor público, revelando irregularidades cabeludas na relação entre empresas privadas e o Estado, já atingiu a nossa pecuária, descobrindo pontos vulneráveis na sanidade animal, que antes era considerada acima de qualquer suspeita e, desde a Operação Carne Fraca, passou a não o ser. Até que ponto essas interdições de carnes brasileiras no mercado comprador têm comprometido o bom desempenho comercial de nossa pecuária? E até que ponto essas fragilidades podem solapar o desempenho salvador do agronegócio em nossa balança comercial?
RR– Eis uma questão delicada, que passa por uma revisão dos mecanismos de defesa agropecuária. Embora tenhamos um sistema bom, é possível melhorá-lo muito, e tanto o governo quanto o setor privado estão mergulhados no assunto. O episódio Carne Fraca foi ruim para a imagem do setor cárnico, com a redução parcial e temporária de exportações, sobretudo de carne bovina. Mas os efeitos da Operação Trapaça foram piores, porque afetaram duramente as exportações de todas as carnes, com ênfase para a de frangos, em que o Brasil é o maior exportador mundial, e muitas fábricas foram proibidas de exportar para a Europa, com reflexos negativos em outros países. É claro que muitos países que suspenderam as importações o fizeram para defender seus produtores, que, em condições normais, não são competitivos conosco: temos preços melhores e boa qualidade de carnes. Mas isso não justifica nossos defeitos, por mínimos que sejam: numa concorrência global acirrada como a que vivemos hoje, não podemos apresentar defeitos, porque estes se transformam no argumento para o concorrente nos barrar.
N – O governo Temer cedeu em praticamente tudo aos manifestantes nas estradas e, em consequência, também ao agronegócio, às transportadoras de cargas, às grandes empresas com frotas e até aos proprietários de veículos urbanos, alguns importados, movidos a diesel. Como vai conseguir resistir a outras demandas sociais desse gênero, inclusive dos próprios caminhoneiros, com os quais negociou apenas uma trégua, que, afinal, nem cumprida foi pelo vencedor, que, como na fábula de Brás Cubas, levou todas as batatas?
RR– Não me parece que o governo tenha atendido ao agronegócio no curto prazo: o setor está em plena safra de grãos, de cana-de-açúcar, de laranja e de café. Claro que as barreiras inibiram o transporte desses produtos em muitas regiões, trazendo prejuízos elevados. Muito mais grave é o problema enfrentado por produtores rurais e por suas cooperativas e indústrias do setor de carnes de frangos e suínos: a ração não chega às granjas, os frangos morrem de fome ou entram na tragédia do canibalismo, os custos explodem, e mesmo que houvesse ração os animais prontos para abate não podem sair das granjas, as fábricas são obrigadas a parar e as galinhas, que não sabem nada da greve, continuam botando ovos – os futuros frangos – que são eliminados aos milhões. Uma situação dramática, que demorará meses para ser retomada a pleno vapor. Claro que, no longo prazo, se o preço do diesel cair com a redução dos tributos, haverá ganhos para o agro, dada a influência desse combustível em todas as atividades de máquinas e colhedeiras no campo, além do transporte de insumos e produtos. Mas por ora os prejuízos são bem maiores que as economias. Agora, se o governo vai resistir a outras pressões que provavelmente virão, só o futuro dirá.
Nota: Normalmente as entrevistas da série Dez perguntas para… são publicadas às quintas-feiras, mas esta está sendo editada com dois dias de antecedência por causa da premência e da gravidade do tema