sábado, 5 de maio de 2018

"Além de repressão, crise nicaraguense traz lição de ironia", editorial de O Globo

Cresce o movimento pela destituição de Daniel Ortega, acusado de liderar a violência contra os manifestantes, que já provovou 45 mortes


Há mais de 15 dias, a Nicarágua vive uma onda de revolta que, segundo o Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh), já provocou a morte de 45 pessoas, inclusive mais de uma dezena de estudantes universitários, contrários à reforma da Previdência proposta pelo governo. A intensidade dos protestos e a violenta reação das forças policiais transformaram as ruas de Manágua e de outras cidades num campo de guerra e destruição, evocando os dias de luta da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que culminaram na queda do ditador Anastasio Somoza, em 1979.

Mas desta vez, paradoxalmente, é o governo de Daniel Ortega, líder da FSLN, que, confrontado pela realidade fiscal, defende uma política recomendada pelo ex-arqui-inimigo Fundo Monetário Internacional (FMI), incluindo uma reforma da Previdência. É também a prova cabal de que, por mais difícil que seja o processo de ajuste das contas públicas, ele é incontornável, se o governante não quiser ver as finanças do país ruírem, como ocorreu com boa parte dos governos bolivarianos, levando o continente a uma guinada política para o centro nos últimos anos.

Mas a ironia não se restringe ao campo econômico. Ao reprimir violentamente os protestos, Ortega age de forma imperial como os ditadores da dinastia Somoza. Entre os 45 mortos registrados pelo Cenidh, estão um adolescente, um jornalista, dois policiais e 18 estudantes. O restante são populares que aderiram aos atos contra o governo.

Os manifestantes destruíram prédios públicos, monumentos e símbolos da FSLN. Também ocorreram saques. Nem mesmo a retirada do projeto de reforma da Previdência pelo governo arrefeceu os ânimos. A luta agora é pela queda de Ortega e de sua vice-presidente e mulher, Rosario Murillo, acusados de fraudar as eleições, autorizar aumentos exorbitantes dos combustíveis e dirigir a ação truculenta da polícia.

Para retomar o diálogo com o governo, os estudantes exigem a criação de uma comissão internacional independente para investigar e punir os responsáveis pelas 45 mortes. Esta comissão seria formada pelo Cenidh, a Corte Internacional de Justiça e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Esta última, porém, não teve autorização de Manágua para visitar o país.

Ortega, por outro lado, começa a perder apoio até mesmo de setores à esquerda e entre os militares, que têm exortado o governo a iniciar negociações imediatamente. O poeta Ernesto Cardenal, de 93 anos, uma das principais vozes do sandinismo, criticou duramente Ortega: “Não queremos diálogo, queremos outro governo”. Ortega certamente cometeu pecados suficientes para justificar sua destituição, o principal deles, a repressão contra a população que jurou defender. Mas seja qual for o desfecho da crise, as questões das contas públicas, em geral, e do déficit da Previdência, em particular, continuarão exigindo uma solução.