Como costumo dizer, estou a cada momento descobrindo o óbvio. É que, às vezes, o óbvio, por ser óbvio, esconde o mistério, ou, pelo menos, é o que me parece.
Uma das coisas óbvias que descobri é que muito troço na vida resulta, em boa parte, do acaso.
Sei que há pessoas que pensam o contrário, pois acreditam que tudo o que acontece já estava determinado. Acho isso difícil, quando mais não seja porque, sem falar no resto, só de gente no planeta há atualmente muitos bilhões. Já imaginou o que seria prever e determinar tudo o que deve ocorrer com essa quantidade de gente a cada minuto?
Bem, não vou discutir esse tema porque não é ele que me traz a essa conversa com você. Acho fascinante –ainda que um tanto assustador– o fato de que o que pode nos acontecer seja imprevisível. Faz da vida uma aventura, e o jeito é torcer por um "happy end".
Mas o melhor mesmo é não se preocupar com isso e deixar o barco correr solto.
Isso não significa não tentar fazer com que tudo dê certo, ou seja, que busquemos o melhor, a felicidade, a alegria.
É como no futebol: a função do técnico é treinar o time para que faça mais gols do que leve. Assim na vida como no jogo.
E era exatamente aí que eu queria chegar: a quantidade de acaso que entra na criação da obra de arte. Já falei sobre isso, citando como exemplo o nascimento do poema.
Antes de escrevê-lo, o poeta tem diante de si a página em branco e, numa página em branco, qualquer coisa pode ser escrita.
Como o poema ainda não existe, o poeta não sabe o que vai escrever nem como começar a escrevê-lo. Diante da página em branco, ele se defronta com um número incalculável de probabilidades, mas, no momento em que escreve o primeiro verso, essa probabilidade –ou seja, o acaso– se reduz.
E à medida que o poema vai se formando, o acaso vai sendo reduzido e só entra ali o que se ajustar ao que já está escrito, o que for necessário à sua realização.
Sim, porque, como na vida, o que realizamos e se mantém é o que se faz necessário. Isto é, trata-se de uma relação dialética entre o acaso e a necessidade.
No poema, como na vida: por acaso, você encontra alguém, mas essa pessoa só se tornará sua companheira se você e ela necessitarem um do outro.
Mas voltemos à poesia. Por esta ou aquela circunstância, ocorre ao poeta determinada palavra que faz nascer o verso inicial do poema. Se em vez desse verso surgisse outro, o poema não seria o mesmo.
Mas não importa, desde que, nessa dialética, resulte um poema capaz de encantar o leitor e, se o consegue, torna-se necessário a quem o lê, incorpora-se a sua vida.
O mesmo ocorre com a pintura: na tela em branco tudo pode surgir, dependendo das primeiras pinceladas que o pintor lance ali.
E, na pintura, ocorre algo que dificilmente ocorre no poema: o pintor pode, estando o quadro pronto, borrar tudo e começar de novo, como aconteceu com um retrato meu pintado por Iberê Camargo: quando pensava que, enfim, ele concluíra o retrato, borrava tudo e começava outra vez. O poeta dificilmente faz isso: se o fizer, terá de começar de novo, enquanto, na pintura, o apagado não se apaga.
Com um poema meu ocorreu um fato que o ajudará a entender o que digo. Escrevi-o pouco antes de partir para o exílio e, lá chegando, verifiquei que o havia perdido.
Inconformado, decidi escrevê-lo de novo e o fiz. Pois bem, ao voltar para casa, reencontrei numa gaveta o poema supostamente perdido. Li-o e fiquei surpreso, porque ele era diferente do que escrevi depois.
A conclusão inevitável é que, se não o tivesse dado por perdido, não o teria escrito outra vez e, assim, a primeira versão passaria por ser a única forma possível de escrevê-lo.
E, de fato, não era, porque o poema, como tudo o mais na vida, resulta de uma soma de fatores circunstanciais que se oferecem à opção do poeta no momento em que o escreve.
Seu núcleo é, certamente, algo essencial que o poeta quer expressar, mas, como ainda não o fez, busca fazê-lo com as ideias e palavras que, naquela situação, lhe ocorrem. Logo, se o momento for outro, o poema não será exatamente o mesmo.