domingo, 30 de novembro de 2014

"Corrupção privilegiada", por Dalmo de Abreu Dallari

Jornal do Brasil

Diretores de grandes empresas empreiteiras de obras públicas, cujos nomes foram citados nos processos referentes à prática de corrupção na contratação e execução de obras de grande vulto econômico, querem que lhes seja assegurado o privilégio de serem julgados diretamente pelo Supremo Tribunal Federal. Se lhes for reconhecido esse privilégio eles não poderão ser processados e julgados pelo Judiciário do local em que tiverem sido praticados os atos agora suspeitos de terem sido viciados por corrupção, mas serão julgados longe daquele local e das circunstâncias em que os atos foram praticados, assim como de pessoas que poderão dar algum testemunho sobre fatos que influiriam na comprovação da prática de corrupção.  Desde logo, é chocante que acusados da prática de atos ilegais prejudiciais ao interesse público queiram escolher o Tribunal em que serão julgados e, mais ainda, pretendam que seus julgadores sejam apenas os integrantes da mais alta Corte do País e isso com fundamento em disposições constitucionais que são contraditórias com o espírito e os fundamentos da Constituição e cuja conveniência prática está sendo altamente questionada, a tal ponto que já existem no Congresso Nacional propostas para sua exclusão do texto constitucional.
O fundamento para essa pretensão dos acusados de corrupção de grande envergadura é a invocação artificiosa do artigo 102, inciso I, letra “b” da Constituição. Segundo esse dispositivo, compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, os membros do Congresso Nacional, além de outras autoridades indicadas em outros incisos do mesmo artigo. Como as grandes obras das quais participaram aqueles acusados, e nas quais teria havido corrupção, foram intermediadas por dois Deputados Federais do Estado do Paraná, que também estão sendo acusados de participar da corrupção, alegam que o processo deverá ser um só e ter curso no Supremo Tribunal Federal, em obediência ao privilégio que a Constituição confere aos parlamentares federais.
Essa pretensão dos empreiteiros poderá ser muito útil para um despertar de consciência, para um alerta, provocando uma discussão aberta e ampla de um tema de grande importância para a prática da democracia e a compatibilidade de certos preceitos constantes da Constituição com os fundamentos constitucionais da ordem jurídica, política e social brasileira. O referido artigo 102 da Constituição trata das competências do Supremo Tribunal Federal e na enumeração dessas atribuições específicas da Suprema Corte é que se encontram os dispositivos que na linguagem dos comentadores da Constituição e na prática diária, inclusive na linguagem da grande imprensa, tem sido identificados como “foro privilegiado”, havendo quem prefira referir-se a esse tratamento constitucional de exceção como “prerrogativa de função”, pois a exceção se aplica aos ocupantes de determinados cargos ou funções. Em princípio, o privilégio de ser julgado apenas e diretamente pelo mais alto Tribunal do País, o Supremo Tribunal Federal, configura uma contradição, pois a própria Constituição, no artigo 5º, inciso XXXVII, diz textualmente: “Não haverá juízo ou tribunal de exceção”.  O que se tem alegado em defesa dessa exceção é que ela foi estabelecida a partir de considerações de interesse público e não objetivando favorecer privilegiados. A principal justificativa é que tal exceção visa proteger a função pública e não a pessoa dos ocupantes, pois eles só gozam do privilégio enquanto estiverem no exercício do cargo ou função. Argumenta-se ainda com a conveniência de proteger a coisa pública, pois o envolvimento em processos que tenham curso em diferentes tribunais e em diversos pontos do País prejudicaria o bom desempenho das atribuições inerentes ao cargo ou função, contrariando o interesse público. A par disso, a possibilidade de início do processo em Tribunais locais iria favorecer a utilização política dos processos, facilitando as iniciativas oportunistas e de má fé. Por tais motivos, alega-se que é de conveniência pública que os processos devam ter curso exclusivamente no Tribunal Superior. Um argumento adicional é que o início do processo num Tribunal local daria a possibilidade de inúmeros recursos, retardando muito a decisão final e, praticamente, contribuindo para a impunidade.  
    Ainda que esses argumentos tenham certa consistência, existem outros, em sentido oposto, que são de grande relevância. Assim, do ponto de vista da eficiência do processo e eventual punição dos culpados muitos já ressaltaram, estando entre eles alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, que a Corte Suprema já está sobrecarregada e não dispõe dos meios práticos para efetuar uma investigação que seja considerada necessária para ampliar e aprofundar a busca de provas e elementos esclarecedores. Além desses aspectos, tem sido suscitada uma questão jurídica, que é de grande relevância. Analisando os efeitos desse privilégio constitucional, o eminente mestre José Afonso da Silva, em seu clássico “Comentário Contextual à Constituição” (São Paulo, Ed. Malheiros, 2014), observa que a atribuição de competência originária ao Supremo Tribunal Federal impede que seja assegurada a garantia do “duplo grau de jurisdição”, ou seja, a possibilidade de recorrer a uma instância superior pedindo a mudança ou anulação de uma decisão condenatória. Aliás, essa garantia consta expressamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de San José de Costa Rica, de 1969, à qual o Brasil deu sua adesão, obrigando-se a aplicá-la. Diz a Convenção, no artigo 8º que especifica as garantias judiciais, que toda pessoa acusada de um delito tem, entre outros, “o direito de recorrer da sentença a um juiz ou Tribunal Superior”. Observa o eminente constitucionalista que o duplo grau de jurisdição não é um princípio expresso, mas é “um postulado de base constitucional”, podendo-se acrescentar que nas obras em que se faz a enumeração dos direitos fundamentais da pessoa humana é comum a menção expressa aos direitos de “ampla defesa e duplo grau de jurisdição”.
Em conclusão, o privilégio de jurisdição, ou prerrogativa de função, é altamente questionável e a prática brasileira dos últimos tempos tem revelado muito mais aspectos negativos do que positivos. Assim, no julgamento do caso que a grande imprensa rotulou de “mensalão” ocorreu e foi mantida na decisão final a inconstitucionalidade do julgamento originário pelo Supremo Tribunal Federal de acusados que não se enquadravam na hipótese da jurisdição privilegiada. Agora, com a reivindicação dos grandes empreiteiros, abre-se a possibilidade de uma ampla discussão, para avaliação dessa exceção constitucional e sua eventual mudança ou eliminação, para que não se utilize a Constituição como instrumento de proteção de uma delinqüência privilegiada.