sábado, 19 de janeiro de 2019

"Às armas, cidadãos!", por Deonísio da Silva

Com armas em casa para nos defender dos inimigos, não podemos esquecer de outro mal igualmente feroz, a ignorância. Para combatê-la: o livro


Os brasileiros recuperaram o direito de ter uma arma em casa. O presidente Jair Bolsonaro cumpriu uma de suas promessas de campanha ao assinar o decreto. Ele atendeu ao que povo decidira em plebiscito há mais de dez anos. Agora falta o livro.
“Armas” é a primeira palavra de Os Lusíadas, obra referencial de nossa língua. No tempo em que crianças e adolescentes estudavam Português a sério no ensino médio para obter o domínio da norma culta e assim ler e entender o que se ouvia e lia, as duas primeiras estrofes do emblemático poema semelhavam um novo vestibular.
O primeiro período tem dezesseis versos e a oração principal está escondidinha lá no penúltimo: “Espalharei por toda parte”. O último é só para passar um brilho nos ditos anteriores: “se a tanto me ajudar o engenho e arte”.
O autor passa o restante das duas estrofes contando o que vai espalhar, aonde os barões foram, o que fizeram, as guerras que travaram, os perigos pelos quais passaram e as obras valorosas com que se vão da lei da morte libertando, isto é, do esquecimento.
Milhares de zero nas redações do Enem tornam dispensável qualquer outro argumento a favor da volta da leitura dos clássicos e de outros livros relevantes para se ensinar Português. De quebra, a turma do “nóis pega os peixe” é dispensada algum tempo para ler e aprender que os alunos já chegam à escola sabendo a língua falada, mas não podem sair dali sem aprender a língua escrita e sem saber expressar por escrito o que falam, sentem e pensam.
A última palavra de Os Lusíadas  é “inveja”, sentimento que tanto vitimou seu autor, o poeta que no Brasil, por honroso deboche, dá nome a um prato: bife à Camões.
Explica-se: o poeta era caolho. Ele perdeu o olho direito em campo de batalha. Mas sobre isso também há a controvérsia de que a efígie pode ter sido invertida na impressão. Resta sem polêmica a desjeitosa homenagem, politicamente incorreta, que traz um ovo sobre um dos lados da superfície do bife.
Versões lendárias são também obscenas, às vezes. Diz-se de outro prato, o bife à cavalo, que, por ter dois ovos sobre a carne, indica a separação dos testículos do cavaleiro quando montado. O primeiro prato veio de Portugal e o segundo veio da França.
Como as armas aparecem nos hinos nacionais? O Brasil só ameaça sair na porrada nos últimos versos e com o eufemismo de clava para porrete: “Mas, se ergues da justiça a clava forte,/ Verás que um filho teu não foge à luta”.
Antes disso, proclamamos a mãe gentil, o céu risonho e límpido, um povo heróico de brado retumbante, mas deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo. Que beleza! Mas é muita moleza!
Eufemismo quer dizer fala boa: do Grego “eu”, bem, bom, e “phemi”, fala. O objetivo é suavizar o dito ou ser agradável, como dizer de quem morreu que ele descansou, como na expressão “descanse em paz”. Esta frase aparece às vezes em latim nos cemitérios: requiescat in pace. Ou no plural: requiescant in pace(descansem em paz).
A União Europeia, que reúne dezenas de nações e de línguas oficiais, mas usa o Latim no lema, tem um hino tão bonito quanto o nosso. É a Ode à Alegria, que diz: “Oh, amigos, mudemos de tom!/ Entoemos algo mais agradável/ E cheio de alegria!”.
Os chatos do movimento do “politicamente correto” não chegaram a tempo no século XIX para condenar o compositor Ludwig van Beethoven pelo arrebatamento exagerado no trecho da 9ª. Sinfonia ou o poeta Friedrich Schiller, no século XVIII, pelos exageros da letra: “Ébrios de fogo entramos/ Em teu santuário celeste!” (Wir betreten feuertrunken Himmlische, dein Heiligtum!). “Ébrios, mas, como?”, podem perguntar os chatos. “Chegam cantando bêbados e pensam que vão ficar impunes?”. Tampouco estiveram presentes na ocasião em que a União Europeia fez a bonita escolha da letra e da música.
O lema da União Europeia está escrito em latim: In varietate concordia (acordo na diversidade) e pode ser ouvido aqui, cantado  em latim, com legendas em português.
A França, a nação dos livros e dos livres, conclama os cidadãos, não os soldados, a pegar em armas, formar batalhões e marchar: “Aux armes, citoyens, formez vos bataillons, marchez, marchez!”.
Com armas em casa para nos defender dos inimigos que porventura nos venham a perturbar, não podemos esquecer que há um inimigo igualmente feroz nas cercanias. É a ignorância. E precisamos de outra arma para combatê-lo: o livro. Ele será melhor arma na escola se tiver sido também na família.
Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
Com Blog do Augusto Nunes, Veja