O site do Palácio de Kensington deveria ser uma das coisas mais monótonas do mundo: comunicados oficiais sobre as atividades benemerentes dos dois príncipes britânicos, chamados pelos títulos de duque de Cambridge e de Sussex, e suas lindas mulheres.
Em lugar de administrar a sonolenta propaganda real e responder mensagens de criancinhas encantadas com a vida das princesas, os assessores de comunicações têm que moderar “centenas de milhares” de comentários virulentos, muitos de teor racista, uma praga datada da época em que o príncipe Harry caiu de amores pela ex-atriz Meghan Markle, filha de mãe negra e pai branco.
O casamento romântico, as roupas deslumbrantes e a barriguinha de gravidez avançada encantaram uma parte considerável da opinião pública. Meghan, segundo a pesquisa mais recente, tornou-se a sexta integrante mais admirada da família real.
Outra parte foi à guerra, usando a linguagem inacreditavelmente violenta que virou padrão nas redes sociais.
Kate, mulher do príncipe herdeiro e futura rainha consorte, sempre foi muito criticada por esperar dez longos anos até “fisgar” o marido, ter origem de classe média (embora os pais sejam milionários) e “trabalhar” pouco (apesar dos três filhos em pouco mais de cinco anos).
Desde que Meghan apareceu no pedaço e ficou evidente um mal-estar entre as cunhadas, Kate ganhou defensores exaltados.
A pecha de interesseira, manipuladora e falsa, inevitáveis no caso das mulheres “comuns” que se casam com homens de status superior (e o que pode ser mais superior do que a família real britânica?) passou para a recém-chegada.
Americana, divorciada, esperta e disposta a criar uma imagem de benemérita moderna, embora circule num mundo de intensa superficialidade, a nova duquesa de Sussex provoca artigos deslumbrados na imprensa e comentários muitas vezes de teor irreproduzível entre leitores.
“Clima pesado”
Os fãs de Meghan não deixam barato e a barbárie digital migrou de jornais e sites, passando a reinar até no mundo supostamente imaculado da realeza.
Os assessores do site do Palácio de Kensington apelaram até ao Instagram, pedindo orientações sobre como administrar o “clima pesado”.
Como em qualquer outro lugar do mundo digital, os comentaristas começam discutindo quem usou a roupa mais bonita ou se comportou de modo mais elegante e, em poucos toques, acabam se agredindo com termos brutais.
As agressões contra as duquesa, divididas entre o Time Kate e o Time Meghan, entram na dança rapidamente. Em alguns casos, o teor das ameaças precisa ser comunicado às autoridades policiais.
Quando o fenômeno das redes sociais explodiu, o anonimato proporcionado pela tela de um celular ou de um computador alimentou a brutalidade da linguagem raramente usada nas interações pessoais.
“Burro”, “gorda” ou “fascista” são palavras perigosas para a esfera IRL (a da vida real) pela facilidade com que desencadeiam conflitos.
Mais recentemente, usuários estão abandonando o anonimato dos nicks e despejando virulências com suas identidades verdadeiras.
“O policial que recebeu minha queixa ficou espantado ao ver que muitas das pessoas que me insultavam não usavam pseudônimo”, disse a deputada francesa Elise Fajgeles.
Como outros parlamentares do partido do presidente Emmanuel Macron, ela entrou na mira dos coletes-amarelos quando reconheceu, durante um programa de televisão, que não sabia o valor do salário mínimo. Os insultos de teor antissemita, “sem nenhum disfarce”, levaram-na a apresentar queixa.
Outros casos de deputados macronistas ameaçados incluíram expressões como “bala na cabeça” e violências sexuais. Duas parlamentares receberam o aviso semelhante de que seriam “decapitadas ou enforcadas”.
Pichações e invasões de domicílio transpuseram a fronteira do mundo digital para o real. O caso mais bizarro foi o da deputada Patricia Gallerneau. Ela acordou um dia e viu a entrada de sua casa fechada por um muro de blocos de concreto.
O imediatismo proporcionado por um celular na mão e muita raiva na cabeça atinge também jornalistas. Grudados permanentemente no Twitter e seduzidos, como tanta gente, pelos “likes”, abandonam o distanciamento profissional e as exigências de rigor de apuração.
“Filhos do incesto”
O caso exemplar mais recente foi o dos adolescentes de um colégio católico de Kentucky, submetidos ao linchamento virtual por causa de uma cena editada e mentirosa envolvendo um indígena reverencialmente chamado de “elder”, como se fosse um sábio tribal.
As imagens completas mostraram que o indígena estava provocando os estudantes e havia ainda um outro grupo de militantes negros envolvido, ofendendo-os de forma vil (“filhos do incesto” é um dos xingamentos reproduzíveis).
Como se fossem integrantes comuns da tribo do Ódio sem Fronteiras, vários jornalistas atacaram pessoalmente os estudantes com tanta gana que um colunista do New York Times, Farhad Manjoo, propôs que os profissionais usem menos o Twitter, “a rede social mais daninha do mundo”.
“Não precisam abandonar totalmente – isso é impossível para quem vive de notícias”, reconheceu Manjoo.
Os estudantes foram massacrados porque estavam numa manifestação contra o aborto e alguns usavam o boné vermelho com o slogan de Donald Trump.
Obviamente, o mesmo princípio vale para o campo ideológico oposto. Jim Acosta, propelido à celebridade pelo estilo agressivo usado nas entrevistas coletivas de Trump, vive recebendo ameaças de morte.
Acosta também usa o Twitter para responder às agressões e estraçalhar Trump. Faz o maior sucesso.
David Von Drehle, do Washington Post, exatamente o jornal que desfechou a versão distorcida sobre os estudantes da escola católica, disse que “o Twitter é a metadona das redações”, referindo-se a uma das drogas mais comuns nos Estados Unidos. É claro que fez isso pelo Twitter.
Proibidas de usar as redes sociais diretamente, pois não fica bem para duquesas, Kate e Meghan, além de fazer de contar que se dão bem quando aparecem juntas, têm que ouvir tudo o que dizer sobre elas em silêncio digital.
Imaginem o que não falam para os maridos.
Veja