quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

"Rita Lobo está certa: comida não é remédio nem veneno", por Leandro Narloch

Folha de São Paulo


chef Rita Lobo tem toda razão ao combater a "medicalização da alimentação" –a crença de que alimentos podem evitar ou provocar doenças. Comida não é remédio nem veneno. Não tem poderes milagrosos nem malignos, ao contrário do que defende um exército de nutrólogos, nutricionistas e celebridades.

É difícil achar um agrupamento humano que não tenha tabus alimentares e não separe os alimentos em bons ou ruins, sagrados ou malditos.

No Brasil do século 17, usar azeite de oliva em frituras era politicamente incorreto: levantava a "suspeita de judaísmo", já que católicos usavam banha de porco nas frituras. Entre os Hua, da Nova Guiné, garotos não podem comer o que lembre vaginas (que seja vermelho, úmido, com pelos ou tenha um orifício).

Eduardo Knapp - 25.jan.2017/Folhapress
Prato Lombo Tropeiro, com feijão, arroz e mandioca firita
Prato Lombo Tropeiro, com feijão, arroz e mandioca firita


O filósofo americano Alan Lebinovitz acredita que a maior parte das dietas atuais segue essa predisposição humana de atribuir valor moral aos alimentos. A diferença é que hoje as superstições alimentares desfilam com uma roupagem científica, apesar do pouco embasamento empírico.

Lebinovitz estuda o assunto do ponto de vista da sua especialidade, a história da religião. Para ele, assim como os contos de fadas, as crenças alimentares têm enredos comuns. No livro "A Mentira do Glúten", ele identifica alguns roteiros frequentes:

1) O conto do "superalimento". A busca milenar pelo elixir da longa vida ou por um panegírico (uma substância que cura todos os males) sobrevive hoje nas dicas de alimentos funcionais, capazes de evitar doenças, combater o câncer ou prolongar a juventude.

2) O conto do alimento amaldiçoado do cotidiano. É recorrente na história a rejeição à comida habitual. Monges da China antiga chamavam de "tesouras que cortam a vida" os grãos mais consumidos na época. Hoje demonizamos enlatados produzidos por grandes empresas. "Comida processada é do mal. Comida natural é do bem. Isso são mantras religiosos, a versão condensada de contos de fadas que dividem alimentos –e o mundo– conforme binários moralistas", diz o filósofo.

3) O conto do passado paradisíaco. No lugar da alimentação habitual, os gurus das dietas defendem um retorno a um paraíso mítico. Os monges chineses prometiam longevidade a quem aderisse a uma alimentação pré-agrícola, à base de plantas selvagens. Os gurus do século 21 defendem a dieta paleolítica, mediterrânea, do Tibete ou o hábito de "comer como seus avós".

4) O mito de que você é o que você come. Na China, acreditava-se que comer pênis de tigre aumentava a virilidade. Aborígenes da Austrália comiam cangurus com o objetivo de saltar mais alto. Médicos do Ocidente por muito tempo acreditaram que carne gordurosa engorda (e não o excesso de calorias). "Você é o quanto você come", afirma Lebinovitz.

É preciso ter cuidado para não cair no costume de ter medo dos alimentos ou esperar poderes mágicos deles. Como diz Rita Lobo, o mais importante é preservar a relação de prazer com a comida.