Dois grupos devem liderar a disputa: o Rumo, braço logístico do grupo Cosan, e o VLI, que tem como acionistas a Vale, o fundo canadense Brookfield e a trading japonesa Mitsui. O valor mínimo dos lances é de R$ 1,3 bilhão e ganha quem fizer a maior oferta.
— Temos o desafio de equalizar a nossa matriz dos transportes e a concessão da ferrovia Norte-Sul é um grande passo para isso — declarou o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas.
O investimento que terá que ser feito pelo vencedor da disputa é de R$ 2,7 bilhões e o prazo da concessão será de 30 anos. Pelas regras do leilão, o vencedor terá que pagar 5% do valor da outorga (uma espécie de aluguel devido ao governo) e o restante em 120 parcelas trimestrais. Segundo especialistas, esse mecanismo foi adotado para afastar eventuais "aventureiros" da disputa.
— Com a necessidade de pagar 5% à vista, o leilão só vai atrair empresas de porte e que já atuam no segmento. Por isso, o certame não deve ter muitos concorrentes — avaliou o advogado Fernando Vilella, sócio do setor de direito público e infraestrutura do escritório Vella Pugliese Buosi Guidoni.
Produção de grãos
O trecho que será concedido à iniciativa privada está dividido em dois blocos. Um deles vai de Porto Nacional até Anápolis, em Goiás, com 855 quilômetros e é operado com movimentação de pequeno volume de cargas pela Valec, uma estatal federal de ferrovias que deverá ser extinta pelo governo Jair Bolsonaro. O segundo bloco tem 695 quilômetros, e liga Ouro Verde de Goiás até Estrela D'Oeste, em São Paulo. O trecho tem 95% das obras concluídas, também pela Valec.
— São trechos que cortam áreas importantes de produção de soja, milho, farelo de soja, produtos que poderão ser escoados pela ferrovia até o Porto de Santos, em São Paulo, ou portos do Norte e Nordeste, com preço mais baixo que o do transporte rodoviário — diz Thiago Gonçalves, diretor da área de Portos e Logística da JLT Brasil.
A estimativa do governo é de uma demanda inicial de 1,2 milhão de tonelada/ano, que deve chegar a 17,1 milhões em 2025 e a 25,8 milhões em 2055. Se a previsão se concretizar, esse volume de carga garante receita a quem ganhar o certame.
Como a Norte-Sul não dá acesso direto a terminais portuários, para escoar a carga o vencedor do leilão terá de utilizar as ferrovias da Malha Paulista operadas pela Rumo, que vão até o Porto de Santos, ou da VLI, para os terminais portuários do Maranhão. A VLI desponta como favorita porque já opera o trecho superior da Norte-Sul, que vai de Açailândia, no Maranhão, a Porto Nacional.
— Por isso, a VLI surge como principal concorrente a disputar o trecho. Se a VLI vencer, vai ter que negociar o chamado direito de passagem com a Rumo para chegar até Santos. Mas se a vitória for da Rumo, a negociação será com a VLI para o terminal portuário do Maranhão. Quem vencer dará um xeque-mate — explica Paulo Resende, professor de logística, transporte e planejamento de operações e coordenador do núcleo de infraestrutura da Fundação Dom Cabral.
Entraves para estrangeiros
O edital garante a passagem de trens da Norte-Sul pelos trilhos das operadoras nos primeiros cinco anos de concessão. Mas a concessão é válida por 30 anos. Segundo especialistas, essa foi um dos entraves que afastou estrangeiros do leilão, especialmente os russos da estatal RZD, uma das maiores companhias ferroviárias do mundo.
— Não se pode afirmar que o edital é um primor de modelagem. O marco regulatório para ferrovias no Brasil também é um "queijo suíço". Mas o que estamos presenciando com esse leilão é um avanço importante — diz Resende.
Para ele, a ferrovia Norte-Sul é chave para a mudança da dependência do transporte rodoviário no transporte de grãos, com custo de frete 40% maior. Se os 4,5 mil quilômetros da Norte-sul já estivessem em operação, desde que começou a ser construída, em 1987, a matriz de transporte seria outra e os produtos agrícolas do país teriam nível de competitividade internacional jamais visto, diz o especialista da Fundação Dom Cabral.
— A ferrovia Norte-Sul tem importância essencial na conexão entre as áreas de produção agrícola e os corredores logísticos do Sudeste e Sul do Brasil, capaz de encurtar distâncias de mais de 2.000 km para os destinos na Ásia, Europa e Estados Unidos — calcula Resende.
Polêmica e Pendências
Antes mesmo de acontecer, o leilão da Norte-Sul virou alvo de polêmica. Na semana passada, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a suspensão do leilão ao Ministério da Infraestrutura e à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). O MPF queria uma justificativa pela escolha do modelo "vertical" de concessão, onde apenas uma empresa vai controlar o trecho. Também foi questionado o fato de o edital não prever o transporte de passageiros.
Mas o ministério e o MPF acabaram chegando a um acordo, através de um protocolo de entendimentos, para assegurar o compartilhamento de infraestrutura ferroviária e desenvolvimento de estudos para operacionalizar o transporte de passageiros, entre outras medidas.
— Com o compromisso firmado com o MPF, o ministério da Infraestrutura e o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) fizeram um trabalho preventivo pioneiro de blindagem e segurança regulatória — disse o advogado Fernando Vilella.
Mesmo assim, existem pendências na Justiça. A Frente Nacional pela Volta das Ferrovias (Ferrofrente) entrou com uma ação popular na 14ª Vara Cível Federal de São Paulo para tentar impedir o leilão. A entidade alega que o edital privilegia as empresas que já atuam no setor. O pedido ainda aguarda a decisão do juiz. A entidade também recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) através de um mandado de segurança coletivo pedindo a suspensão do certame. As justificativas são: direcionamento do leilão em favor da VLI, a ausência de regulação para garantir o direito de passagem e o potencial prejuízo "ao erário em função de riscos contratuais e vícios de engenharia contidos no edital".
A ferrovia Norte-Sul também foi alvo de uma operação da Polícia Federal, em 2017, para investigar crime de lavagem de dinheiro decorrente do recebimento de propina em obras da Norte Sul, no âmbito da operação Lava-Jato. Estima-se que pelo menos R$ 4 milhões tenham sido lavados e o principal alvo foi ex-presidente da Valec, José Francisco das Neves, o Juquinha, que chegou a ter a prisão preventiva decretada.
João Sorima Neto, O Globo