quarta-feira, 26 de setembro de 2018

"A responsabilidade dos omissos", editorial do Estadão

Não se chega sem esforço à situação em que os grandes favoritos de uma eleição presidencial são um deputado do baixo clero e o preposto de um presidiário. Tal cenário é fruto, antes de mais nada, do estado semifalimentar da política, cujo exercício democrático se presta justamente a manter os liberticidas e os arruaceiros longe do poder. Muitos colaboraram para que se chegasse a esse tenebroso estado de coisas.
Já é sobejamente conhecido o papel do lulopetismo nessa tragédia. Décadas de um comportamento arrogante e excludente, que circunscreveu o debate nacional à surrada luta de classes e alimentou a cisão social, empobreceram a política e, como dano colateral, criaram o caldo de cultura no qual medrou o movimento que desembocou em Jair Bolsonaro – não por suas qualidades, mas justamente pela total ausência delas. Bolsonaro, por não ter nenhuma importância política ou intelectual, apresentou-se como veículo ideal para dar existência pública ao que antes ficava circunscrito a murmúrios constrangidos no terreno privado – a aversão visceral a tudo o que o PT representa.
Bolsonaro vicejou porque os que deveriam fazer oposição política real ao PT quando este se esbaldava no poder preferiram se omitir. Enquanto Lula da Silva montava a formidável estrutura corrupta que lhe garantiu quatro eleições seguidas, cooptando todo tipo de agremiação venal, o PSDB, a quem cabia liderar a contestação à degradação dos costumes políticos e dos padrões administrativos, tomou o caminho da autodestruição.
Envolveu-se em lutas fratricidas que desfiguraram uma legenda nascida do desejo de modernizar a política. Quando perdeu o poder para o PT, em 2002, quedou-se paralisado diante do carismático ex-metalúrgico. Renunciou a seu papel de opositor de Lula, aceitando de cabeça baixa a pecha de “herança maldita” que o PT atribuiu ao governo de Fernando Henrique Cardoso. Não soube lidar com o fenômeno lulopetista, que à luz do dia arruinava tudo o que era mais caro aos tucanos, especialmente o respeito ao pluralismo político. Como resultado, o PSDB foi perdendo cada vez mais o seu natural protagonismo de oposição, abrindo espaço para um movimento espontâneo, mas crescentemente radical, de contestação ao PT. Foi deixando de se apresentar, de fato, como alternativa ao PT, à disposição do eleitorado.
A tibieza da oposição partidária ao lulopetismo coincidiu com a implosão da política a partir da Lava Jato, que acabou servindo de instrumento para os que pretendiam purificar o Brasil na fogueira dos escândalos. No ardor de demonstrar seu caráter apolítico, a Lava Jato apontou seu dedo inquisidor indistintamente para gregos e troianos, muitas vezes com base apenas em delações tão suspeitas quanto oportunistas. O PSDB não soube lidar com as denúncias envolvendo alguns de seus quadros, e nessa hesitação acabou sendo igualado ao consórcio que assaltou o Estado nos governos do PT. Para piorar, seu candidato a presidente, Geraldo Alckmin, que tudo faz para se dissociar do igualmente denunciado presidente Michel Temer, formou uma coligação repleta de partidos que se serviram dos esquemas lulopetistas – o famigerado “centrão”. Perdeu assim o caráter de “pureza” que muitos brasileiros, no embalo da Lava Jato, passaram a esperar de seus políticos – desejo que Bolsonaro tão bem soube capitalizar.
Na reta final da campanha, vendo muitos de seus antigos eleitores declararem voto em Bolsonaro, os tucanos escancararam sua crise de identidade. Marcado pelos recentes vacilos na defesa das reformas que sempre apoiou, o partido assiste a algumas de suas lideranças promoverem franca sabotagem de Alckmin. A poucos dias do primeiro turno, Tasso Jereissati, em entrevista ao Estado, resolveu falar dos “erros memoráveis” do partido. E Arthur Virgílio, também a este jornal, disse que Alckmin “não é confiável”.
Não admira que Bolsonaro esteja a caminho do segundo turno – com votos de muitos eleitores tucanos, iludidos pela promessa do ex-capitão de fazer na marra as mudanças que o PSDB não bancou. Mas, como advertiu a revista The Economist, que deu sua capa a Bolsonaro chamando-o de ameaça à democracia, o deputado, se eleito, poderá não ser capaz de fazer nenhuma reforma – porque não é no jogo político que ele acredita – e poderá “degradar ainda mais a política”, abrindo caminho “para algo ainda pior”.