Nada do que o papa Francisco fez até agora se compara, em termos de desalinhamento doutrinário, ao acordo em princípio no qual entrega à China o poder de nomear bispos.
A Igreja é católica, apostólica e romana porque o bispo de Roma, também conhecido como papa, é o detentor da autoridade hierárquica suprema.
Ao ceder esse poder, mesmo que de maneira habilmente disfarçada pelo domínio de todas as sutilezas da linguagem diplomática, o papa Francisco abre um racha em sua própria autoridade.
A Associação Católica Patriótica Chinesa, instituição oficial inventada no auge do comunismo puro e duro, torna-se assim a corrente dominante à qual têm que dobrar o joelho os católicos que enfrentaram décadas de perseguições para manter a fidelidade a Roma, praticando a religião na clandestinidade como os primeiros cristãos.
Sem nenhuma surpresa, o cardeal Joseph Zen, do alto de seus 86 anos e da nada tranquila aposentadoria em Hong Kong, classificou o acordo como “uma incrível traição”.
Por “entregar o rebanho aos lobos”, o secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, deveria renunciar, fuzilou o veterano da resistência ao poder avassalador do regime chinês. E o papa? “Contra o santo padre eu não me coloco”, disse, fiel à inquebrantabilidade hierárquica.
Mais surpreendente do que a “rendição total”, segundo a definição do cardeal Zen, é a explicação que vem sendo sussurrada para vaticanistas simpáticos a Francisco.
Uma delas, a conhecida Maria Antonietta Calabrò, escreveu, entre todos os meandros da categoria, basicamente que os ataques da “direita católica americana” a Francisco são coordenados com a política de confronto comercial de Donald Trump em relação à China.
E a resposta de Francisco foi a concordata, como vem sendo chamado o acordo pelos mais rebeldes, evocando a sinistra submissão da Igreja firmada pelo futuro papa Pio XII em 1933 com a Alemanha nazista.
Tem que ter fôlego para segurar tanto conspiracionismo. A vaticanista segura. “Ninguém pode negar que o acordo do Vaticano com a China tem uma dimensão geopolítica além da espiritual e religiosa”, escreveu ela.
Realmente, ninguém negaria isso: colocar o papa no bolso é uma espetacular vitória geopolítica para a China.
A vaticanista associa, em seguida, as revelações ainda não esclarecidas sobre a aparente condescendência do papa com Theodore McCarrick, o ex-cardeal americano que caiu em desgraça por seu histórico de práticas sexuais com seminaristas, a um ataque bem planejado. Praticamente, geopolítico.
“Justamente no momento em que os Estados Unidos de Trump começaram uma guerra comercial com a China, a direita católica americana trouxe à tona o papel de negociador não-oficial exercido pelo agora ex-cardeal com a China.”
SINAL DE DEUS
McCarrick realmente fez oito viagens à China, entre suas muitas atividades diplomáticas. “Chegou a ficar hospedado em Pequim num seminário sob controle do Estado”, anotou a vaticanista, sem ironia aparente. O ex-cardeal sempre foi um ativo defensor do acordo agora selado pelo Vaticano.
Só para lembrar. McCarrickl caiu em desgraça por causa dos processos na justiça comum americana revelando o segredo de Polichinelo sobre suas atividades extracurriculares de abuso de menores e maiores.
O papa foi envolvido no escândalo depois que o arcebispo italiano Carlo Maria Viganò o acusou de ignorar a punição secreta de Bento XVI a McCarrick e reabilitar sua carreira de representante diplomático não-oficial da Igreja.
Viganò fez a denúncia e sumiu do mapa, ressurgindo agora com outra declaração, vertendo veneno contra o papa, em que reafirma a “decisão mais difícil de minha vida”.
Francisco optou pela tática altamente discutível de não se pronunciar a respeito, num silêncio cheio de insinuações que agravou as tensões internas da igreja.
A tática das insinuações voltou a ser usada por ele no caso da China. Na tradicional “entrevista do avião”, quando fala aos vaticanistas e repórteres em geral na volta de alguma viagem ao exterior (dessa vez, aos países bálticos), ele disse que recebeu muitas cartas de apoio depois da grave acusação de Viganò.
Entre as manifestações, uma veio de um bispo da igreja oficialmente reconhecida pelo regime chinês e outra de um bispo da igreja clandestina. Viu nisso “um sinal de Deus” para fazer o acordo com a China, promovendo a unificação.
É preciso ter muita fé para entender o salto duplo mortal carpado da lógica franciscana. O tipo de fé extraordinária dos padres e bispos chineses que, encarcerados ou severamente vigiados, mantiveram durante décadas.
No jornal South China Morning Post, de Hong Kong, um desses resistentes, identificado sob o nome fantasia de padre Mateus, disse que, agora, pretende se aposentar, em silêncio obsequioso. Ele passou décadas em prisões chinesas por não aceitar a submissão à igreja estatal.
O título da reportagem é “Traídos e abandonados: por que os católicos chineses na clandestinidade se sentem como Jesus na Sexta-Feira Santa”.
Existem cerca de 10 milhões de católicos na China. Cerca de 40% são fieis da clandestinidade. Seu pastor máximo agora quer que saiam dela e aceitem a palavra final do Estado chinês.
Por quanto tempo continuarão a dizer a declaração de fé na “Igreja una, santa, católica e apostólica”, que faz parte do Credo desde o Concílio de Niceia, realizado no ano 325?
E como aceitarão as insinuações nada sutis de que a culpa disso tudo é do Trump, que quis prejudicar a Santa Madre só por causa da rivalidade com a China?
Os crentes sempre têm o consolo da falta de lógica da crença. Talvez os chineses “traídos e abandonados” creiam que “a fé vê o invisível, acredita no inacreditável e recebe o impossível”.
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