quinta-feira, 27 de setembro de 2018

"O voto nos tempos da cólera", por Luiz Cláudio Latgé

Um fato notável desta eleição é o derretimento das forças políticas de centro. O Brasil se dividiu entre direita e esquerda, sem espaço para discurso moderado. O debate se radicaliza, se é que existe debate. Não deveria ser surpresa, já vimos acontecer em outros cantos do planeta. É assim que funciona a nossa cabeça no tempo das redes sociais, um mundo guiado por sinais binários, 'like' ou 'dislike'.

A tecnologia digital mudou o mundo. Mudou, especialmente, a organização dos meios de comunicação, talvez os primeiros a sentirem as transformações. A indústria fonográfica desapareceu. Jornais, revistas e editoras são fechados a cada semana. As TVs enfrentam a competição do streaming. Google, Facebook, Amazon, Netflix estão entre as maiores empresas do mundo. Não há mais representantes das mídias tradicionais nesta lista.


O meio é a mensagem, pregava Marshall McLuhan, maior interprete da comunicação de massa, na Galáxia de Guttenberg. Ainda repetimos o enunciado. Mas a revolução da tecnologia permitiu a multiplicação dos canais de comunicação. Todos temos voz através do Facebook, do Whatsapp, do Twitter, do Youtube, do Instagram... Os meios perderam sua exclusividade. A comunicação se faz de forma direta, sem a intermediação de um “veículo” de comunicação. Eu sou a mensagem, talvez seja mais apropriado dizer hoje em dia.

A comunicação direta tem uma lógica diferente daquela que pautou os meios de comunicação, desde a invenção da imprensa. Os jornais tinham a tarefa de exercer a curadoria sobre os fatos que seriam reportados. Para tanto, criaram regras e normas de conduta. Como mostrar todos os lados da notícia, checar fatos e procurar o contraditório. 

Na comunicação direta não existe este compromisso. As mensagens de Trump pelo Twitter são a essência de seu pensamento. Não há espaço para ouvir o outro lado, ou checar fatos. Não foi por acaso que se tornou o campeão das fake news e dos fatos alternativos. 

Se alguém quiser contestar, que use outros canais. E, no caso americano, para Trump, qualquer outro canal será um “traidor vendido”, mesmo que seja uma instituição da liberdade de pensamento, como o New York Times.

Se o meio é a mensagem, as mídias sociais começam a modelar nosso pensamento. Elas são diretas, carregam uma mensagem clara, sem nuances. Estão endereçadas a um grupo de seguidores, que, por definição, estão alinhados com o pensamento que expressam. A mensagem é espalhada em rede, construindo uma comunidade. Quem recebe o texto tem duas opções, aprovar ou criticar.

Quem trabalha com redes sociais sabe que este é um território pautado por 'lovers' e 'haters'. O que faz com que um assunto ou outro apareça entre os mais vistos é a manifestação de “apoiadores” e “detratores”. São os que se expressam e dominam a rede, ainda que não sejam maioria. A tradução é imprecisa, mas a denominação é apropriada, porque revela a disposição de trabalhar por uma causa, sem questionamentos, sutilezas ou limites. Está dado o território do vale-tudo, no qual cada um cuida da sua mensagem e tenta destruir a mensagem do outro. Parece com alguma coisa que estamos vivendo?

Nestas eleições, pelo que nos revelam as pesquisas até agora, o PSDB viu escapar entre seus dedos o histórico de antagonismo ao PT. Pouco adiantou para Alckmin a construção de uma aliança capaz de garantir metade do tempo de televisão. O seu eleitor quer um discurso mais duro: quer prender bandidos, não quer disputar vaga de trabalho com mulheres, negros e minorias, quer alguém que reordene o mundo e acabe com “os vermelhos”. Bolsonaro roubou seu discurso.

Do outro lado, Ciro gostaria de herdar parte do legado eleitoral de Lula. Mas evitou radicalismos, tentou se apresentar mais moderado, menos intempestivo que nas suas últimas aparições. Pontuou bem nas pesquisas até Haddad assumir os votos de Lula. Chegou a se apresentar como uma terceira via, até para eleitores do PSDB. Marina teve estratégia parecida. Mas foi pulverizada pela radicalização da disputa.

Veja que, nesta conversa, não há espaço para discutir os candidatos, currículo, preparo, partidos, trajetórias, projetos, nada. Não importa se um desdenha da Constituição e outro segue a liderança de um preso. Não há conversa. É direita e esquerda. Bolsonaro e Haddad não chegam a ter 30% da intenção de votos. Juntos têm metade do eleitorado, apenas. Mas arrastam o voto de quem é contra um ou outro. #ForaPT,#Elenão. Não é à toa que o índice decisivo do pleito não é a preferência pelo candidato, mas a sua rejeição. Aí, sim, os candidatos arrancam a manifestação de quase 80% dos eleitores.

Quando o eleitor for votar, domingo, 7 de outubro, vai tratar a urna como se acostumou a se relacionar com o seu celular. Vai clicar 'like' ou 'dislike'. Resta saber que voto vai prevalecer: o quero ou o não quero. O voto raivoso é sempre perigoso.



O Globo