presidente americano Donald Trump abriu mão da parte liberal do projeto hegemônico dos Estados Unidos, aquela que diz respeito ao livre comércio e a instituições multilaterais, mas não abriu mão do lado militar do mesmo projeto. É por isso que o cientista político americano Barry Posen, diretor do Programa de Estudos de Segurança do Massachusetts Institute of Technology (MIT), tem chamado de “hegemonia iliberal” a visão de política externa do atual ocupante da Casa Branca.
“Os Estados Unidos acabaram de aumentar seus gastos militares anuais de US$ 600 bilhões para US$ 700 bilhões, e, para levar adiante todos os projetos que a elite deseja, pode não ser suficiente. Muitos dos nossos aliados deveriam ser mais responsáveis pela sua própria defesa e política externa, e nós deveríamos estar gastando não mais, mas menos dinheiro com defesa. Trump ainda não decidiu fazer isso”, diz Posen, autor, entre outros livros, de “The sources of military doctrine” (As fontes da doutrina militar).
O GLOBO: A semana passada começou com Trump xingando o premier canadense Pierre Trudeau e dois dias depois abraçando Kim Jong-un. Qual o significado disso?
Para ser sincero, não sei. Há diferentes hipóteses, parece que o presidente vê cada negociação como uma atividade em si mesma, e em cada negociação ele usa uma tática que faz mais sentido para ele. Se fizer sentido elogiar e ceder, ele o faz. Se fizer sentido ser combativo, ele será. Você pode especular que ele é mais combativo com poderes que ele acredita que são fracos, e que tendem a aquiescer, e mais sedutor com poderes que são mais fortes. Ele pode até imaginar que ser beligerante em algumas situações faz com que seja visto com mais respeito em outras. Há pessoas que leram seu livro, “A arte da negociação”, que afirmam ver uma lógica diferente do que a que eu observo. Você pode formular a hipótese que quiser. A única coisa que se repete em suas atitudes é que ele parece ser uma pessoa que acredita que a agressividade é boa para as negociações, lhe rende pontos. Ele acredita que os aliados americanos são fracos, desorganizados e muito dependentes dos Estados Unidos.
Desde a Segunda Guerra Mundial, a política externa americana tinha o pressuposto de que, para liderar, era preciso pagar um preço, principalmente em relação aos aliados mais próximos. Trump parece ignorar esse pressuposto. O que mudou?
Não concordo com essa caracterização. Quando os Estados Unidos assumiram a tarefa de conter a União Soviética e organizar uma aliança contra ela, não acredito que tenhamos concordado em carregar o maior peso decorrente disso porque dessa forma manteríamos os privilégios da hegemonia. Nós concordamos que precisávamos carregar o peso maior porque isso era necessário para conter a União Soviética. Não era um preço a pagar pela hegemonia, era uma necessidade. É possível argumentar que isso ocorreu depois, quando a Guerra Fria acabou. Os Estados Unidos, sem admiti-lo abertamente, decidiram que queriam continuar sendo o poder hegemônico global, e que haveria um preço a ser pago. Mas nem todo mundo nos Estados Unidos concordava com isso.
A elite da política externa, republicana e democrata, simplesmente pressupôs que ser um “hegemon” era uma coisa ótima, e que teríamos que pagar um preço extra. E nós pagamos, principalmente do lado militar. A maioria dos nossos aliados parou de gastar o suficiente com sua defesa, e acho que Trump está certo nisso. A maioria dos nossos aliados tem forças armadas que, embora pareçam impressionantes a olho nu, estão em péssima forma. E eu incluo aqui até as que estão bem, como as britânicas e francesas. Ambas são subfinanciadas.
Os Estados Unidos aceitaram isso, mas nunca houve um debate real no país. Acontece que Trump não concorda com isso e, embora eu não seja um apoiador de Trump, nesse ponto específico eu concordo com ele. Esse negócio não é mais sustentável, e uma das razões é que há muitos desafios militares agora. Os Estados Unidos acabaram de aumentar seus gastos militares de US$ 600 bilhões para US$ 700 bilhões, o que é muito dinheiro, e é possível argumentar que, para levar adiante todos os projetos que a elite deseja, pode não ser suficiente. Não que eu concorde com todos esses projetos, eu acredito que os Estados Unidos têm compromissos demais, e que muitos dos nossos aliados deveriam crescer e cuidar de si mesmos, especialmente os europeus. Eles deveriam ser mais responsáveis pela sua própria defesa e política externa, e nós deveríamos estar gastando não mais, mas menos dinheiro com defesa. Trump ainda não decidiu fazer isso.
O senhor disse que há muitos desafios militares hoje, mas eles são maiores do que na Guerra Fria?
Ainda não, mas serão.
Estamos então em um mundo de competição entre grandes potências, por causa da China?
Sim, mas detesto usar a expressão “por causa da China”. Eu diria de uma maneira diferente. Em um sentido irônico, não apenas os americanos mas as economias industriais avançadas estão vendo os dividendos do que era uma política algo idealista, mas também autointeressada, de aumentar o número de potências econômicas consequentes no mundo, em termos de comércio, investimento, divisão do trabalho, tudo de que os economistas clássicos falam.
As economias avançadas abraçaram a globalização, fizeram-na acontecer. Não podemos agora reclamar de que criamos o ambiente para que outros países se tornassem ricos a ponto de competir conosco. É o que está acontecendo com a China, com a Índia em menor grau. Mesmo a Rússia, que não tirou vantagem da globalização devido a seus problemas internos, se recuperou do estado terrível a que sua economia e suas forças armadas chegaram nos primeiros anos depois da Guerra Fria. É um mundo diferente daquele que conhecemos desde os anos 1940, é uma mundo multipolar, que acho que vai se tornar mais e mais multipolar.
Tentar ser um “hegemon” em um mundo com várias grandes potências é um projeto muito difícil, mas ainda é o projeto a que se dedicam os Estados Unidos. Donald Trump, de certa forma, não está nesse script. O presidente parece ter algo bem diferente em mente, mas é difícil saber o que é. Ele parece disposto a romper com a sabedoria convencional sobre livre comércio e globalização, mas ainda não vimos o quão longe irá. Podemos dizer que ele está no processo de abandonar essa parte do projeto liberal, mas da outra parte do projeto hegemônico, de que os Estados Unidos devem ser o mais forte poder militar do mundo, ele não abriu mão. Ao contrário. Ele aumentou os gastos de defesa, ameaçou os norte-coreanos, ameaça os iranianos, ameaça os chineses. Não parece inclinado a ameaçar os russos, mas as pessoas que trabalham para ele sim.
Então a parte militar do projeto hegemônico não foi abandonada, só a parte econômica liberal. E isso em uma espécie de reação emocional à sensação de uma boa parte da população trabalhadora americana, que não vê como a globalização a beneficiou. Houve benefícios, mas os dirigentes não puderam explicá-los muito bem.
É isso então que o senhor chamou de “hegemonia iliberal” em um artigo na revista “Foreign Affairs”?
Exatamente, é como eu vejo até agora.
Como o senhor explica a aparente contradição entre as posições de Trump em relação à Coreia do Norte e ao Irã?
Para ser sincero, eu fiquei totalmente surpreso com o envolvimento de Trump com o caso coreano. Sua própria base política não poderia se importar menos com a Coreia do Norte. Acho que ninguém ali perdeu um dia pensando na Coreia do Norte antes de Donald Trump ser presidente.
Por outro lado, Trump é muito próximo de muitas pessoas que apoiam fortemente o Estado de Israel. Sabemos que a atual liderança de Israel é muito ligada a esses setores. E não estou falando dos judeus americanos, mas de muitos cristãos que apoiam incondicionalmente Israel, devido a questões religiosas. Se Israel vê os iranianos como uma ameaça, eles acreditam.
Além disso, Trump pessoalmente tem um problema com o Islã e seus fiéis. A visão dele sobre o Islã não é particularmente sofisticada. E os americanos se lembram de que tivemos problemas com o Irã por muito tempo, muitos jamais perdoarão o Irã pela crise dos reféns. Então Donald Trump tinha uma predisposição para desconfiar do Islã, que na visão dele está ligado ao terrorismo, e o ramo do Islã que é mais problemático para nós é o sunita. Isso tudo conduziria a uma má relação entre Trump e as monarquias do Golfo Pérsico, mas esses países têm um recurso chamado petróleo, e Trump pode não ter um entendimento sofisticado de economia, tecnologia da informação, mas entende de petróleo, aço.
A diferença não pode ser apenas porque a Coreia do Norte tem a bomba, e o Irã não?
Sim, a resposta mais simples é sempre a melhor. Várias pessoas apontaram que os iranianos não tinham a bomba, e então o presidente se sente mais confortável em bater neles. Já os norte-coreanos têm, e o presidente, depois de ameaçar com “fogo e fúria”, pensou melhor. Eu estive em alguns encontros nos quais se discutiu o caso norte-coreano, e todo mundo com quem conversei sobre como seria um ataque americano para eliminar todas as armas nucleares norte-coreanas disse que seria incrivelmente arriscado. Algumas pessoas diziam: talvez exija um ataque nuclear americano primeiro. Será que mesmo Trump estaria disposto a tentar isso? Acho que não. Mas isso ainda leva à pergunta de por que ele começou isso, isto é, quando a Coreia do Norte começou a testar bombas e mísseis, por que ele disse: “Nunca vamos deixar isso acontecer, vamos aniquilar você!”? Ele poderia simplesmente dizer: “Aproveite suas armas, aproveite sua pobreza”.
Talvez os iranianos busquem a bomba agora…
Acho que é tarde demais. Pode ser que eles pensem em fazer isso, mas, se forem inteligentes, eles vão continuar apontando o dedo para a cara dos europeus dizendo: “É com vocês manter esse compromisso, estamos dando a vocês uma chance”. E, mesmo que os europeus não possam dar aos iranianos o acordo que eles pensavam que conseguiriam, se você é iraniano e quer derrotar as sanções americanas, o melhor a fazer é ter muitos aliados ricos. Se os iranianos saírem do acordo, tornarão muito fácil para os europeus apaziguar os americanos.