Acabado o Brasil x Suíça, corre pro Telecine Pipoca: às 20h tem Sofia Coppola em seu estado mais depurado, torcendo as convenções do faroeste e dos thrillers eróticos em O Estranho Que Nós Amamos (2017). Poucas mulheres cineastas despertam tanto fascínio (e inveja) quanto ela na indústria audiovisual de nossos dias. A exibição desta noite no canal ainda conta com uma dublagem bem ok. Eleonora Prado dubla Nicole Kidman e Felipe Grinnan bate um bolão como a voz nacional de Colin Farrell.
É só pelas frestas, entre ralos fachos de uma luz esmaecida e amarronzada, que a verdade se faz presente em O Estranho Que Nós Amamos – não a verdade filosófica, com V, mas a legitimidade do desejo. Toques, olhares lascivos, cheiros no cangote, nucas que se desnudam num levantar de cabelos… tudo isso só é visto de soslaio, numa imersão em sombras. Existe tesão em ebulição por todo lado e, como ele é novidade no mundo que Sofia Coppola nos convida a conhecer – a partir de uma janela rigorosamente desenhada a partir dos códigos do gótico –, o clamor do sexo chama mais atenção do que as patologias ali já instauradas. Por “ali”, entenda uma escola para moças nos EUA da segunda metade dos 1800, acossada pela Guerra de Secessão, na luta entre os confederados e os ianques. O chamado do “querer” se dá quando um soldado é encontrado, ferido, à porta da instituição. Sua presença acende o fogão da carnalidade em um espaço onde as cabeças vivem na metafísica, onde a aprendizagem passa por rudimentos do Francês e de outras disciplinas. Mas o que as frestas não deixam transparecer são as outras forças, latentes e potentes, ali reunidas, como combustível para a postura defensiva (e agressiva) das alunas e professoras. De todas as forças, a que alcança mais vetores naquele casarão escuro é a necessidade de sobrevivência. É este o tema deste thriller erotizado sobre conexões, feito por uma cineasta especializada em fraturas familiares.
Uma das mais inquietantes artistas do cinema internacional na atualidade, capaz de fazer dos sentimentos matéria para narrativas avessas à obviedade, Sofia Coppolafaz aqui algo de político – na representação da autoproteção do feminino – porém menos piqueteiro do que os discursos marqueteiros a seu redor levam a crer. É um filme que se notabiliza pela exuberância formal acima de tudo e, a partir dela, enxergamos o vigor do conteúdo de preservação de um gênero que cineasta traça. É um trabalho de excelência, talvez o mais requintado de uma carreira que conseguiu, com Encontros e Desencontros (2003), um do melhores longas-metragens desta década, engatar um namoro com uma legião de fãs. Existe aqui toda uma vertiginosa reflexão sobre modos de mobilização das mulheres, mas também existe um retrato da masculinidade que não cai no sexismo ou no preconceito. McBurney, o militar interpretado nas raias do esplendor por Colin Farrell, não é mau por ser homem e sim por ser dúbio, ambicioso. É um personagem à altura das figuras cheias de camadas encarnadas por Nicole Kidman (a diretora Martha) e pela educadora Edwina (Kirsten Dunst, num delicado retrato para a fragilidade de um ser apaixonado).
Rodada na Louisiana, esta produção de US$ 10,5 milhões é uma releitura do romance The Beguiled (título original do longa), de Thomas Cullinan, filmado por Don Siegelem 1971, com Clint Eastwood no papel hoje confiado a Colin Farrell. Existe uma insistente (e desnecessária) tendência em se comparar os dois, como se houvesse a relação de remake entre eles, coisa que não se deu. Sofia não refez o filme de Sigel. Sofia releu o livro de Cullinan imprimindo nele sua autoralidade: é comum na realizadora a opção por conexões afetivas familiares, que vedam brechas deixadas pela solidão, o que se percebe aqui na maneira como Martha cuida de “suas meninas”.
Essa postura autoral foi desenhando um casamento com a inquietação plástica a cada filme novo dela, sobretudo a partir do memorável Um Lugar Qualquer (2010), pelo qual ela conquistou o Leão de Ouro de Veneza. Fala-se pouco de seu A Very Murray Christmas, feito para o NetFlix em 2015, mas ali, naquela comédia delirante, de corpo mutante, experimental, está a proveta para o que ela alcança plasticamente na parceria com o fotógrafo francês Philippe Le Sourd (o mesmo de O Grande Mestre). O visual que os dois criam juntos afasta a ideia (pejorativa) de histeria naquele conclave de moças e a substitui por um tom misterioso de mais substância psicanalítica, de mais vida. A loucura não vem dos úteros e sim de um país em conflito armado. A loucura vem de fora para dentro. E a tradução desta atmosfera por vezes lembra o trabalho mítico de Néstor Almendros (1930-1992) em Cinzas do Paraíso (1978), de Terrence Malick. Por esta feita, Sofia ganhou o prêmio de melhor direção em Cannes este ano. É o primeiro a ser conquistado por uma mulher desde 1961, quando Yuliya Solntseva foi laureada por Epopéia dos Anos de Fogo. Esse número precisa aumentar.
Rodrigo Fonseca, O Estado de São Paulo