sexta-feira, 1 de junho de 2018

"Nem tudo ao céu, nem à terra", por José Paulo Kupfer

O Globo

A crise dos caminhões expôs espanto generalizado diante de seus devastadores impactos e da dificuldade de encontrar saídas para problemas complexos


Bocas abertas e olhos arregalados foram a contrapartida de abundância no cenário de escassez — de combustíveis, alimentos, serviços e tudo o mais que compõe a vida organizada de uma sociedade — promovido pela greve do setor de transporte de carga rodoviária. O espanto e as surpresas com os acontecimentos que impuseram virtual colapso a inúmeras atividades não se limitaram, contudo, a seus devastadores impactos sobre a rotina das pessoas. Atitudes, diagnósticos e propostas de solução para a crise aguda também causaram perplexidade.

Da mesma forma que, para cada problema complexo existe sempre uma solução simples e equivocada, pode-se concluir que, no caso da paralisação dos caminhões, é possível produzir infinitas explicações aparentemente críveis, mas, em geral, distantes da realidade. Uma delas é a de que as coisas seriam diferentes se, em lugar das estradas de rodagem, os governos da segunda metade do século passado para cá tivessem optado pela ênfase nas ferrovias.

Não há dúvida de que a opção pelo rodoviarismo privou a economia dos ganhos de escala e eficiência do sistema ferroviário, ainda mais quando se está falando de um país de dimensões continentais. Mas os evidentes ganhos dos trens — também das hidrovias e da cabotagem — não diminuiriam a dependência da carga transportada sobre rodas.

São caminhões — não trens ou barcos — que ligam, por exemplo, a produção integrada de leite e frango e se encarregam de chegar aos postos de combustíveis, supermercados, hospitais e farmácias. Como ocorre nos países com amplas malhas ferroviárias da Europa, além dos Estados Unidos e do Japão, o desabastecimento é inevitável quando eles param.

Outra explicação simples e bastante difundida das razões para a crise dos caminhoneiros remete ao estímulo pretensamente excessivo, com crédito barato e farto, no governo Dilma, à compra de caminhões. O “excesso” de veículos de carga teria contribuído para derrubar o preço dos fretes e corroer a margem dos transportadores. Difícil entender como é possível culpar uma política que promove redução nos preços de um importante componente dos custos de produção. Ainda mais quando se fazia necessário renovar uma frota na qual um em cada cinco veículos circulava com mais de 20 anos de idade.

Melhor diagnóstico fez o ex-ministro do Planejamento Dyogo Oliveira, agora presidente do BNDES: “Não há caminhões demais, mas crescimento de menos”, resumiu ele. Mas, se o baixo crescimento está no centro da crise do transporte rodoviário de carga, a raiz do problema pode ser localizada na política de preços adotada no segundo semestre do ano passado pela Petrobras. Não por coincidência, foi ela o estopim da paralisação e de um infindável Fla X Flu de palpites a respeito do seu acerto ou equívoco.

Aqui, novamente, é grande o risco de encontrar respostas simples e erradas para um problema complexo. Não há incompatibilidade entre a preservação das margens da Petrobras e uma política de preços que leve em conta o fato de que os operadores de carga rodoviária trabalham com contratos de prazo fixo, não podendo ficar expostos a variações frequentes dos preços de seu insumo básico.

Por isso mesmo, à luz da experiência internacional, do caráter estratégico do setor de petróleo e ainda mais da posição híbrida da Petrobras — é empresa estatal, detentora de monopólio em partes da cadeia de produção, mas com acionistas privados e competidora em diversos mercados —, é lícito dizer que a política de preços adotada, embrulhada em alta dose de insensibilidade política, não tinha como ficar de pé.

Basta trocar petróleo por taxa de câmbio e caminhoneiros por exportadores/importadores para entender o ponto. Quando a volatilidade aumenta no mercado cambial, o Banco Central atua com diversos instrumentos para suavizar a gangorra da taxa de câmbio. Em analogia, o próprio mercado financeiro poderia criar um instrumento de hedge — algo como um “swap combustível” — que possa ser contratado por transportadores.

No Chile, o cobre é taxado para formar fundos de estabilização e na Noruega os roylaties do petróleo mitigam as variações de preços. Nos Estados Unidos, desde 1973, quando eclodiu a primeira crise do petróleo, transportadores e clientes negociam sobretaxas flexíveis em seus contratos para harmonizar altas e baixas nas preços dos combustíveis. 

Aqui, onde o costume é brigar por tudo ao céu ou tudo à terra, faltaram filtros e amortecedores, sob a forma de fundos específicos, para conectar e compatibilizar as partes.

José Paulo Kupfer é jornalista