A questão dos refugiados, migrantes ou clandestinos, seja qual for a palavra escolhida, está fazendo muita gente boa perder o juízo.
O nacionalismo em ascensão por causa das grandes ondas migratórias e até a alta temporada de futebol, que é uma prolongação da guerra por outras maneiras, contribuem para esquentar as cabeças.
Nos Estados Unidos, fotos da época do governo Obama continuam a ser usadas para “provar” que o abrigo de menores em centros separados dos pais que entram irregularmente no país, exigida por lei para submeter os adultos ao processo legal, é uma perversidade do governo de Donald Trump.
A nau cheia de africanos rejeitada pelo novo governo italiano continua causando estragos entre países aliados e posicionamentos alucinados.
Uma jornalista espanhola teve um ataque de bom-mocismo galopante e chamou os migrantes acolhidos pelo governo de esquerda, também recém-empossado, de “Ulisses do século 21”.
O que têm os argelinos, nigerianos, sudaneses e outros em comum com o herói homérico? Hexâmetros dactílicos? Desde quando navegar para ir de um país pobre para um rico é equivalente a retornar, com um longo intervalo, da guerra de Troia ?
Matteo Salvini, eleito com base no mau-mocismo, trolou a recepção grandiloquente da Espanha aos mais de 600 passageiros do Aquarius.
“Espero que acolha mais 66 mil, não vamos ficar ofendidos”, ironizou o líder da Liga, o partido que ganhou projeção nacional na última eleição.
Apesar das palavras nada amáveis do novo ministro do Interior, dois navios da Marinha italiana haviam estocado o Aquarius com água e comida, além de gentilmente dividir os navegantes para eliminar o risco de superlotação.
Até recentemente, a ordem para a Marinha italiana era resgatar todos os que fazem a travessia do Mediterrâneo, partindo da Líbia, e que não fossem transportados pelos navios de ONGs alemãs e francesas.
Com o novo governo italiano, a situação mudou completamente. Salvini mandou fechar os portos. O movimento migratório caiu 70%, exatamente como aconteceu na fronteira com o México quando Trump assumiu – tudo, aliás, já voltou ao que era antes.
Num momento em que saiu uma pesquisa mostrando que espantosos 42% dos brasileiros gostariam de mudar de país, não é adequado ignorar o impulso que move os clandestinos em direção à Europa.
Mas também é impossível deixar de levar em consideração os sentimentos de revolta nos países afogados em marés humanas.
Como a Itália, onde o desemprego entre jovens continua na faixa dos 40% em determinadas regiões, pode lidar com mais de 600 mil clandestinos que chegaram ao país nos últimos anos? E que só não ficaram todos lá porque o objetivo é sempre a Alemanha, com os mais gordos benefícios?
E como a Alemanha pode absorver mais de 1,3 milhão de estrangeiros?
Todo ano, o líder da União Social Cristã, o partido da Baviera que vive em coligação quase carnal com os democratas-cristãos, ameaça se estranhar com Angela Merkel por causa da questão dos migrantes e refugiados.
Este ano, talvez o resto do mundo tenha que aprender a pronunciar Horst Seehofer (Zírrofer). Como ministro do Interior, ele elaborou um germânico plano de 63 pontos para controlar a entrada de estrangeiros, atualmente na média de 11 mil por mês.
Também deixou vazar a frase: “Não dá para trabalhar com essa mulher.”
Merkel também não pode trabalhar com ele se insistir no plano, que inclui não aceitar a entrada de migrantes sem documentos, um truque comum, ou que tenham sido registrados em outro país europeu.
A base do programa de Merkel de pressões e chantagem contra países da União Europeia que não aceitam a política de cotas – Polônia, Hungria, República Checa e Eslováquia – é justamente impedir decisões individuais.
Se a União Social Cristã saísse do governo já pouco sólido, em razão da sempre precária participação dos social-democratas, a esquerda tradicional, seria o colapso.
Seehofer já declarou com todas as letras que “o Islã não se encaixa na Alemanha”.
A União Social Cristã mandou colocar crucifixos nos prédios públicos da Baviera, que é a parte católica da Alemanha, onde ainda não existiam, como forma de reafirmação da formação religiosa e cultural da região.
O congraçamento e a fraterna convivência, entre outros clichês, que se vê na seleção alemã é tudo fachada.
O faz de conta ruiu quando os dois jogadores de origem turca mais conhecidos do futebol alemão, Özil e Gündogan, que jogam em times ingleses, fizeram uma visita ao presidente Recep Tayyp Erdogan, em passagem por Londres.
Gündogan ainda lascou na dedicatória da camiseta: ”Para meu presidente”.
Os alemães de origem turca, que brigaram durante décadas até conseguir uma mudança de legislação que lhes desse cidadania alemã, têm também cidadania turca.
As ruas das cidades alemãs visitadas por Erdogan costumam ficar vermelhas com as bandeiras enfeitadas pelo crescente. Os teuto-turcos também ganharam o direito de voto e retribuíram: Erdogan levou 63% dos votos na eleição de 2017 que lhe valeu poderes suprapresidenciais (contra 51% na Turquia propriamente dita).
Os políticos alemães de origem turca, concentrados na esquerda do Partido Social-Democrata ou do Die Linke, ficaram passados.
Os três milhões de habitantes com origem turca são um caso separado nas atuais ondas migratórias: seus pais ou avós vieram muito antes, para trabalhar num mercado que precisava de mão de obra fabril.
A onda atual desencadeou em 2014 e é simbolizada pela selfie em que uma coquete Angela Merkel posa ao lado do sírio Anas Modamani, que dizia ter 17 anos (depois ele processou o Facebook por ser falsamente identificado em posts aleatórios como terrorista).
Entre 2014 e 2017, refugiados muçulmanos radicalizados praticaram 32 atentados em países europeus, deixando 182 mortos e 814 feridos.
O levantamento é da Heritage Foundation, um think tan americanos, de tendência conservadora.
O maior número entre as quase mil vítimas co terror fundamentalista foi na França, mas houve ataques em países como Suécia e Finlândia, empenhados até um nível de absurdo em acolher e amparar refugiados.
Mas é difícil competir com a Alemanha em termos de benefícios. Recém-chegados que pedem asilo e vivem em centros para refugiados recebem roupa, comida, artigos de higiene, assistência médica, chip de celular e uma ajuda em dinheiro que vai de 135 euros por mês, por indivíduo, fora uma média de 80 euros por filho.
Quando saem dos alojamentos, aluguel e mobiliário são subsidiados, além da assistência médica, aulas de alemão, além de 408 euros por pessoa (mais, se morar numa cidade cara como Berlim).
É de estranhar que 75% dos alemães apoiem o plano de Horst Seehofern? Assim como 57% dos italianos apoiam a mão dura de Matteo Salvini com os clandestinos africanos?
A questão da migração insufla os diferentes nacionalismos europeus, também alimentados pela camisa de força do euro e da superburocracia da União Europeia.
A tentativa de apresentar todo e qualquer sentimento nacionalista como perverso, em si mesmo, chega ao ponto em que as bandeiras com a cruz de São Jorge, o símbolo da Inglaterra, são consideradas um indicador de mau gosto e origem social humilde pelas elites (em estado de choque incurável desde o plebiscito do Brexit).
Isso sem falar em situações específicas, como o independentismo da Catalunha, onde política e futebol estão mais misturados do que nunca.
Os catalães torcem contra o time da Espanha, exceto quando “seus” jogadores fazem gols. Nos campeonatos internos, até a ondulante e sensual Shakira foi envolvida, por ser casada com o catalão Gerard Piqué. “Shakira é uma ****”, gritam torcedores canalhas.
Depois da crise do técnico afastado na véspera da estreia na Copa do Mundo, por ter assinado um contrato com o Real Madrid, a rixa se sofisticou e, agora, são os jogadores “madridistas” o alvo de ódio coletivo, inclusive de não-catalães.
Na Rússia, torcedores iranianos estão colocando as manguinhas de fora e fazendo o que não podem em seu país: pedindo publicamente que mulheres possam assistir jogos de futebol em estádios.
Para suprema humilhação dos iranianos, orgulhosos da herança cultural persa, os rivais árabes, considerados uns cameleiros toscos, passaram na frente deles. O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed Bin Salman, liberou uma ala para mulheres em estádios.
Os dois países travam guerras em território alheio, na Síria e no Iêmen – o que, obviamente, não significa que suas torcidas se identifiquem com isso.
Além de guerra, política e futebol, tem a briga religiosa: árabes são sunitas, na ampla maioria, e iranianos são xiitas.
Já que a Itália ficou, tristemente, de fora, será que podiam chamar o Matteo Salvini como juiz numa eventual partida entre Irã e Arábia Saudita?
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