Imaginem um presidente com 84% de popularidade? Não é muito difícil, pois tivemos um precedente recente parecido.
Por isso, sabemos como é enganosamente fácil se embriagar com os braços calorosos do povo.
Andrés Manuel López Obrador, o presidente mexicano que todo mundo abrevia para AMLO, tomou posse em janeiro e começou a cumprir promessas de valor mais simbólico, mas grande repercussão num país parecidíssimo com o Brasil em termos de castas enquistadas na administração pública.
Quem não gosta da demissão de funcionários públicos de altos salários? De um aperto em juízes de tribunais comuns e do Supremo que dão um jeito de burlar a lei ganhar mais do que o presidente? Da venda de veículos de luxo e aviões usados pelos mesmos?
Os mexicanos estão adorando. Até uma das medidas menos aprovadas do populista de esquerda com características mexicanas, o apoio a Nicolás Maduro, conseguiu 53% de reações positivas.
Acolher um desqualificado que está matando seu povo de forme pode ser antiamericanismo infantil, a doença impossível de erradicar da América Latina, pode ser produto da paixão por AMLO.
Faça o que fizer, o presidente está com o vento a favor. Até no caso de atitudes ridículas, como as cartas que escreveu ao rei Filipe da Espanha e ao papa Francisco propondo que peçam desculpas pelas atrocidades cometidas durante a conquista e a colonização do México.
Considerando-se o histórico do papa ítalo-argentino, e o fato de que a Igreja é realmente uma instituição linear, a mais antiga do Ocidente, não é impossível que venha um mea-culpa do Vaticano.
O governo espanhol, controlador da monarquia submetida a todos os mecanismos do aparato democrático e sem sequer uma ligação dinástica com Isabel e Fernando, os Reis Católicos da época da conquista, rejeitou “com toda a firmeza” a carta de AMLO.
E declarou o óbvio; “A chegada, há quinhentos anos, dos espanhóis às atuais terras mexicanas não pode ser julgada à luz de considerações contemporâneas”.
O detalhe é que, até a próxima eleição, o governo é do esquerdista PSOE. Mas até pelos padrões de Pedro Suárez, o primeiro-ministro por um fio, amigo de AMLO, a demanda de perdão é inadmissível. Ainda mais em véspera de eleição.
Pelo mesmo motivo, partidos da oposição espanhola, do centro à direita, estrilaram mais. “É uma ofensa intolerável ao povo espanhol”, gritou Albert Rivera, do Cidadãos. “O populismo atua assim: falsificando a história e buscando o confronto.”
“Ele, que tem sobrenome espanhol e vive lá, que peça desculpas”, rugiu o escritor Arturo Pérez-Reverte, conhecido pelos romances históricos. “Se acredita realmente nisso, é um imbecil.”
Tirando a parte do imbecil, 67% dos leitores que participaram de uma pesquisa do jornal El Universal, por esta própria condição integrantes do topo da pirâmide mesoamericana, concordam que a Espanha contemporânea não tem nada a ver com a de 500 anos atrás.
É claro que AMLO não está querendo faturar com a elite quando faz um gesto desses ou posa de xamã como fez na posse, recebendo rituais fumacentos e até um bastão de comando do povo maia (deu rolo: o autor do presente foi desautorizado).
O México tem uma história extraordinariamente rica, complexa, com explosões de violência que tornam o país bem diferente do Brasil.
Até no tocante a um ponto em comum, a criminalidade inflacionada pelo tráfico de drogas, a ultraviolência, geralmente praticada entre bandos rivais, tem paroxismos de tortura e mutilação que evocam tanto a herança nativa quanto a rica tradição espanhola em filetar e queimar hereges ou inimigos.
Quem foi pior? Os imperialistas astecas que sacrificavam pelo menos 20 mil pessoas nos templos de Tenochtitlán num ano bom ( num ruim, a conta passava de 80 mil)? Tão impiedosos que povos vassalos se aliaram ao desconhecido Hernán Cortés, com seus 508 homens, dezesseis cavalos e onze caravelas, das quais mandou incendiar dez e uma voltar com notícias ao rei?
Montezuma, o último imperador asteca, morto por apedrejamento ao pedir a rendição de seus súditos? Fernando e Isabel, os reis que pediram a Inquisição para separar os verdadeiros convertidos entre os pacíficos judeus e os descendentes dos conquistadores mouros que haviam abraçado o cristianismo nada voluntariamente, para escapar à expulsão em massa?
A pergunta é absurda em termos históricos. Fora da imaginação de roteiristas de escola de samba, todos os estudiosos, há muitas décadas e, uma minoria, há séculos, relatam o processo de descobrimento e colonização do Novo Mundo com tudo o que teve de fabuloso, em termos de conhecimento científico de navegação, astronomia e visionarismo, mas também de terrível para os povos nativos expulsos ou reduzidos à servidão.
Pedir desculpas aos “primeiros povos” como fez Justin Trudeau no Canadá ou tirar estátuas de Cristóvão Colombo como na California é apenas produto dos excessos politicamente corretos que pretendem faturar no presente com acontecimentos históricos que não entendem ou não querem entender.
Quando um descendente de escoceses, franceses e ingleses como Trudeau faz isso fica um pouco menos – apenas um pouquinho – ridículo do que um exemplo da mestiçagem geral como o novo presidente mexicano.
AMLO disse que também vai pedir desculpas no ano que vem, quando os 500 anos da Conquista vão dar o que falar, principalmente àquela categoria mencionada por Pérez-Reverte.
As tradições nativas e as 68 línguas indígenas faladas no México são fortes, mas apelar como fez AMLO e pedir licença à Mãe Terra para abrir uma rodovia que passa pela região maia, com suas estonteantes belezas naturais e riquezas arquitetônicas (todas evocando sacrifícios humanos em massa), soa demagógico e tolo.
AMLO tem uma raridade na América: apoio popular e maioria no Congresso. Está com o taco e também a tortilla na mão.Não precisa fazer apelação nas redes nem “articulação” com os políticos.
Seria bom que aproveitasse isso para melhorar a vida dos mexicanos, combater a catastrófica criminalidade, constranger os corruptos e podar marajás.
Melhor deixar Mãe Terra, xamanismo, revisionismo histórico e outras bobagens apelativas para bolivianos ou americanos, situados nos extremos político-econômicos do nosso continente. E não tripudiar sobre o sofrimento muito real e contemporâneo do povo venezuelano. Se não, depois vai ter que pedir perdão.
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