quarta-feira, 27 de março de 2019

"Bombeiros, taxistas e professores", por Roberto DaMatta

“Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina!”
Ouvi esse estúpido mantra brasileiro desde menino e, quando me tornei um profissional do ensino, pensei muito nesse horror nacional ao estudo e à reflexão, ao lado do entusiasmo permanente com a malandragem e suas éticas e métodos que estudei em Carnavais, Malandros e Heróis, um livro que, por sinal, completa 40 anos. Quem gostava de ler e escrever – e eu sempre fui um devorador de livros porque fazia muitas perguntas para o mundo –, tinha como destino ser pobre ou louco. “Esse menino vai enlouquecer: ele vive lendo...” Sempre tomei essa admoestação como um aviso inútil, porque eu já sabia da minha loucura. 
Mas depois de décadas vivendo de ler, ensinar, escrever e estudar (que, entre outras coisas, é ler até compreender), treinado pelo compasso de uma sociologia comparativa, acho que entendo a reação negativa que a leitura causa no estilo de vida brasileiro. 
A mais importante é, sem dúvida, o rompimento relativo com o grupo social e familiar, já que o livro isola, individualiza e torna o descendente mais sabido do que o ancestral ou  mais rico. A sabedoria é (ou era...) modesta. Ela atua silenciosamente, mas, quando aparece, desmascara a ignorância, quebrando o controle absolutista da autoridade dos pais e dos poderosos. Pode, então, assumir uma feição perigosa num sistema tão amarrado em si mesmo como o nosso. Quase sempre, ler é desobedecer...
Aliás, toda sociedade que universalizou o seu saber se tornou mais igualitária, criando contextos competitivos saudavelmente meritocráticos. Esse aprendizado que o poder à brasileira, baseado nos privilégios do cargo e nos favores pessoais, entende como “fazer política”: isto é, tomar cafezinho, “arrumar colocação” e conversar!
Mesmo nesse Brasil até hoje condenado à ignorância como valor, a melhor escolha é um livro.
*
No final do século 19, dois jovens italianos resolvem imigrar. O mundo se abria para eles na forma de um símbolo de bem-estar social chamado América e de um outro chamado Brasil. Um era frio e puritano; o outro, tropical e misturado – católico. 
Decidiram pelo Brasil e vieram parar em São Paulo onde, em 1888, se tentava branquear a sociedade, mas não havia pão; exceto os fabricados em casa. O mais velho, Nicolau, adaptou-se, o mais novo, Victorio, achou a falta de pão um acinte e partiu para New Jersey, Estados Unidos.
Lá, empregou-se justamente num pioneiro restaurante pizzaria, orgulhoso de manufaturar o próprio pão. Nicolau acabou fundando sua família em Minas Gerais e Victorio fez o mesmo em New Jersey. Diz o folclore da família (que o espírito da literatura me dá o direito de ficcionalizar) que um dos filhos de Victorio,  Salvatore, foi vizinho da família Sinatra em Hoboken e que sua irmã, Sofia, namorou o cantor.
O tempo passou e um dos netos de Nicolau, Vicenzo, virou jornalista, fez um brilhante curso de História em Belo Horizonte e, no Rio de Janeiro, especializou-se em Antropologia Social no Museu Nacional e ali foi pesquisador. Aposentou-se nominalmente, pois continua atuando em Brasília. 
Pelo seu trabalho como professor, educador e pesquisador de ameríndios da área de um Goiás então inóspito e por ter realizado trabalho de campo numa sociedade indígena virgem de estudos, Vicenzo foi honrado com uma bolsa de pesquisa concedida pelo Peabody Museum da Universidade de Harvard. Assim que chegou a Cambridge, Massachusetts, localizou seus tios e primos da família que havia escolhido os Estados Unidos e vivia em New Jersey.
Organizou-se um jantar em sua homenagem. Ao chegar à casa de um dos primos, que exercia a nobre profissão de bombeiro, Vicenzo não pôde deixar de notar o conforto da residência forrada de tapetes e tendo um aparato de cozinha moderno. Ficou impressionado com a geladeira e assombrado com o belo carro Oldsmobile azul de transmissão automática do primo. 
Vicenzo que ainda não tinha uma televisão ou uma torradeira elétrica, e muito menos um carro no Brasil, surpreendeu-se mais ainda com o modo respeitoso e quase bíblico com o qual foi recebido quando seus outros primos chegaram e apertaram sua mão orgulhosos de ter um “professore” e um autor de livros científicos na família.
Sou um mero professor, repetia Vicenzo com o copo cheio de bom vinho, enquanto a família americana, constituída de bombeiros, marceneiros e taxistas, reiterava que ele era o “professore”. Era o  que educava e, com a aparentemente fraca, mas penetrante luz da inteligência,  tentava tornar o mundo um lugar mais feliz e justo. Muito diferente do Brasil onde ninguém reconhecia o seu trabalho como intelectual e onde ele, angustiado, viu na televisão o seu amado Museu Nacional – que ele imaginava eterno – pegar fogo.
O Estado de São Paulo