quarta-feira, 27 de junho de 2018

"Problema no olho", por Roberto DaMatta

Estava vendo mal e marcou uma consulta. Sempre havia enxergado bem, e, na sua família, a garantia de uma “boa vista” era reafirmada por seus pais e tios que haviam desaparecido com a casa no Ingá, em Niterói, fazia já algum tempo. Mas se a casa tinha virado edifício, o olhar continuava firme embora coberto por óculos que mudavam regularmente.

No consultório do Dr. Flávio Murakana, ele foi recebido com o carinho de sempre. O oculista sabia como o seu cliente prezava a glória de ver-para-ler e considerava o enxergar uma interpretação — aquele “second look” que nos faz rir ou chorar no cinema. Foi assim que o médico o conduziu à cadeira especial dos oftalmologistas.

Poltrona mágica que obriga a sair de si mesmo, por oposição à dos dentistas que invadem nossas almas pela boca. Já letras do oculista, pensou, são um modo primitivo de leitura. Se você nada enxerga, você é analfabeto! Afora isso, o conjunto é numa sequência horizontal e sem sentido, por contraste com a vida que tudo confunde e mistura. Aquilo que você pensava que era grande — por exemplo, o cara que você elegeu e achava grandioso, está na cadeia; os netinhos que ele pegou no colo transformaram-se em jovens admiráveis. Do mesmo modo, o amor de sua juventude pegou uma doença maior do que seu corpo, fazendo o seu coração bater numa mistura de letras, como aquelas sopas que sua mãe lhe administrava nos tempos de brincar no quintal e matar passarinho...

Sentado na boa poltrona ele estava tranquilo até perceber que o F era T; o U era V; e o R era B. Decepcionado, ele via embaçado o que antes era claro como as águas da Praia das Flechas, onde aprendeu a tomar banho de mar na Niterói de sua infância.

O oculista o conduziu a um gabinete semissecreto no qual jazia no centro uma espécie de binóculo preso a uma mesa, “Vamos ver o fundo do olho”, disse o médico.

Ele pensou, mas não disse: (vamos ver é o caralho! Você vai ver; eu vou enxergar e pensar no pior). E, de fato, ele olhou para um túnel negro e viu um pedaço dele mesmo que nada dizia, exceto a má noticia com a qual foi brindado pelo Dr. Murakana:

— Professor, o seu problema não é de óculos, é do olho.

— Como assim, do olho? De que olho?

— Dos olhos, professor, dos olhos... dos dois olhos! Respondeu o oculista.

— Então é sério?

Um mês depois, ele fica diante de um outro binóculo ainda mais sofisticado para ver uma enorme mancha vermelha que o remete ao planeta Marte, pois, do lado oposto da mesa e controlando tudo, há uma médica que, cheia de neutralidade espacial, manipula um computador, deixando ver dentro do túnel uma linha que oscila de cima para baixo e da esquerda para a direita. Enquanto isso ocorre, uma enfermeira segura firme sua testa de encontro a um anteparo, enquanto a doutora da Nasa determina que ele pisque ou abra bem o olho...

Em plena viagem sideral, intrometem-se lembranças infantis. Ele se recorda dos exames de vista que fazia na sua prima Lelilinha quando ia de um olho para o outro...

Um mês depois, o Dr. Flávio Murakana lhe diz solenemente:

— Professor, seu exame revela drusas na mácula. Felizmente são secas...

— Como vamos curá-las?

— Não têm cura! Eu sinto muito professor. É uma degenerescência devido à idade.

— Vai de mal a pior?

— Sim, mas a gente tenta segurar com doses de luteína e lentes prismáticas.

Hoje ele lê com dificuldade. Está vendo a Copa do Mundo chegando perto da televisão. De longe, só enxerga metade do campo e, pior que isso, não vê o principal: a bola, cuja leviana disposição de acompanhar todo mundo ele despreza.

O adolescente dentro dele que ainda pensa em conhecer o Frank e o Mann — sim, o Frank Sinatra e o Thomas Mann — está desapontado. Mas, velho que o contem com os olhos molhados, dá um riso discreto...

PS: Convocado pelo Tite para a minha décima oitava Copa do Mundo, volto (se não me atingirem além da conta) a escrever neste espaço em agosto. Vou dar tudo de mim ao meu time e, com os meus companheiros, espero, chegar ao hexa!

Essa crônica é para Zé Paulo Cavalcanti, que a inspirou e, otimista, acha que eu vejo o mundo quando, na realidade, eu só enxergo mesmo Niterói.

Roberto DaMatta é antropólogo

O Globo


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