Carros autoguiados? É um cenário hipotético que encontro em todo lado. O excelente Robert Moor, por exemplo, escreveu na revista "New York" um artigo a respeito ("What Happens to American Myth When You Take the Driver Out of It?") onde não esconde o entusiasmo.
Em 20 anos, ou até menos, os velhos carros com motorista vão desaparecer da paisagem. Vantagens? Mil. Carros autoguiados não provocam acidentes (tradução: milhões de vidas salvas) e são ecologicamente sustentáveis (tradução: adeus, poluição).
Binho Barreto/Binho Barreto/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Mas há mais: essa tecnologia gloriosa significa uma libertação para todos. Para crianças e velhos, que terão possibilidades de mobilidade em segurança. E até para os pais das crianças, que poupam tempo em deslocações fatigantes.
De resto, e para não espantar os cavalos, Robert Moor fala precisamente de cavalos. Explico melhor: nos Estados Unidos, parece que existem 5 milhões de cavalos para atividades de lazer.
Um mundo de carros autoguiados transforma os carros de hoje nos cavalos de amanhã: haverá pistas próprias para que os nostálgicos, em parques de diversões apropriados, possam dirigir e só matar saudades.
Converso sobre o tema com um amigo que entende do assunto. Ele concorda com o otimismo tecnológico e depois conclui: "Você já vive neste mundo".
Verdade, verdade: tenho licença para dirigir desde os 18. Mas, sempre que posso, dispenso. O meu problema é a preguiça, entenda-se, e não qualquer princípio filosófico elaborado. (Exceto se considerarmos a preguiça o mais importante princípio filosófico. Eu considero. Mas divago.)
Só que existe um problema: de vez em quando, gosto de dirigir. Acontece à noite, depois de um dia extenuante de trabalho, e o prazer é semelhante ao do cigarro-clichê depois da intimidade.
Vou deambulando pelas ruas da cidade, sem música, como um personagem de ficção científica em visita ao planeta Terra. Nas noites de verão, quando existe uma brisa de misericórdia, a experiência é literalmente narcótica –a janela aberta, o sentimento de controlo sobre a máquina. A sensação tangível de liberdade rumo a nenhum destino. Quando regresso a casa, sinto que renasci.
Por isso pergunto ao meu amigo: "E que fazer às pessoas que gostam de dirigir?"
Ele fica em silêncio, como se eu tivesse falado uma barbaridade genocida, e balbucia o óbvio: "Não podem".
"Mea culpa": a pergunta não foi inocente. Ela sempre foi o espinho fatal para qualquer proposta utópica. Regularmente, formulo a mesma questão quando discuto política: alguém defende um modelo coletivista e eu, falsamente ingênuo, interrogo: "E que lugar nesse paraíso para quem discorda da doutrina oficial?".
O interlocutor, com paciência de santo, responde pedagogicamente: educação, persuasão, otimismo sobre a natureza humana. Certo, certíssimo. "E se mesmo assim o indivíduo recusa a doutrina oficial?".
A conversa termina porque eu estou a "desconversar". Pois estou: todos sabemos qual seria o tratamento para esse "inimigo do povo". Cadeia ou coisa pior.
Longe de mim comparar as experiências totalitárias do passado com as evoluções tecnológicas do futuro. Até porque o futuro, já ensinava Karl Popper nas suas críticas ao historicismo, só existe na cabeça dos cartomantes, como Marx e seus discípulos.
Mas, se os carros autoguiados são para levar a sério, isso representa mais uma limitação à liberdade humana, como o grande escritor J.G. Ballard, citado no artigo da "New York", acertadamente avisa.
Em nome da "vida" e do "ambiente" –como a legislação antifumo, certo?– a ciência, hoje convertida em religião oficial do Ocidente, irá determinar como devemos viver –e até morrer.
Aliás, se a ideia é evitar a morte a todo custo, é fácil imaginar um mundo onde os nossos filhos e netos serão robôs programados para beber, comer, caminhar, viajar, estudar e até trepar de acordo com um manual rigorosamente científico.
Será um mundo seguro, sem dúvida: como uma jaula de jardim zoológico. Mas será também um mundo pós-humano, onde tudo aquilo que nos define (autonomia, consciência, surpresa, falibilidade, paixão, contingência, responsabilidade etc.) será assunto de arqueologia.
Há quem aplauda esse mundo. Pessoalmente, ele é tão perturbante que o melhor é eu pegar o carro e dirigir enquanto posso pela noite quente da cidade.